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Cenário de romance e devastação

A Ilha Maurício, no Oceano Índico, é linda, porém devastada. Foi cenário de um romance literário que inspirou a reformulação da nossa Floresta da Tijuca.

25 de maio de 2005 · 19 anos atrás

O hotspot Maurício das Mascarenhas não é o nome de um tijucano almofadinha, namorado da “Patricinha”. Maurício é uma ilha localizada no Oceano Índico, mais precisamente no arquipélago das Mascarenhas, que também inclui os territórios insulares de Reunião e Rodrigues. “Hotspot” é um conceito criado
em 1988 pelo ambientalista Norman Meyers para indicar ecossistemas com alto grau de endemismo, cuja excessiva degradação esteja inviabilizando a sobrevivência de suas espécies nativas.

Nesse sentido, não há a menor dúvida que Maurício merece este título. Desde 1787, quando Bernardin de St. Pierre publicou o romance Paulo e Virgínia, a ilha é internacionalmente conhecida como o paraíso na terra. St. Pierre, mescla de ambientalista pré-histórico e engenheiro militar, viveu na colônia francesa entre 1768 e 1770, quando ficou muito bem impressionado com sua fauna e flora e muito mal impressionado com a escravidão. De fato, o escritor maravilhou-se com a roupagem natural que vestia Maurício. Influenciado pelos encantos da ilha, já em 1784, publicou “Estudos da Natureza”. Defendia que a felicidade era alcançável até pelos mais pobres, desde que vivessem em
comunhão com o meio ambiente. Em “Paulo e Virgínia”, tanto quanto nos “Estudos”, traçou a visão rousseauniana do “bom selvagem”- o ser humano em seu estado natural é bom, a exposição à sociedade moderna é que o perverte. Desde então, as mais de 500 edições de “Paulo e Virgínia”, em três dezenas de idiomas diferentes,
têm carregado a visão de Bernardin de St. Pierre mundo afora.

O romance fincou pé definitivo no Brasil no último quartel do século XIX, em um momento em que a elite intelectual do Segundo Reinado se esforçava para dar ao Rio de Janeiro um verniz de cidade civilizada. O então Ministro do Império era o Visconde do Bom Retiro, homem sintonizado com as teses européias e norte-americanas de que a Revolução Industrial havia produzido cidades insalubres, desprovidas de áreas naturais. Foi nessa época que Frederick Olmsted desenhou as linhas civilizatórias do Central Park, em Nova Iorque. Enquanto isso, em Paris, deu-se forma ao Bois de Boulogne e, no Rio de Janeiro, transformou-se a Floresta da Tijuca. Tudo com o objetivo de tornar as áreas urbanas mais habitáveis. Plantado entre 1861 e 1874, por Manuel Gomes Archer, com o fim de proteger os mananciais que abasteciam a população carioca, o futuro Parque Nacional da Tijuca foi remodelado para virar área de lazer de uma cidade que “civilizava-se”. Terminada a faina de adensar a vegetação, o segundo administrador da Floresta, Barão d’Escragnolle, ajudado pelo paisagista Glaziou, cuidou de abrir trilhas. Seu objetivo primordial era prover a Floresta de circuitos aprazíveis de passeio. Criou cascatas, desbastou mirantes, embelezou grutas e furnas, criou recantos onde se pudesse fazer piqueniques. Batizou suas obras com nomes pitorescos: Caminho da Saudade, Mirante do Excelsior (em alusão ao poema de Longfellow) e, como não podia deixar de ser, Gruta Paulo e Virgínia.

Onipresente em todas as cidades de Maurício, onde é fonte de inspiração para o nome de livrarias, hotéis, restaurantes, além de diversos bêbes recém nascidos, o romance de Bernardin de Saint Pierre encarna a alma dos habitantes locais. No belíssimo Museu Blue Penny, localizado na Capital Port Louis, há uma exposição permanente dedicada aos personagens-ambientalistas do romancista
francês. Lá estão os originais de várias edições do livro, tampas
retratando o casal, itens do veleiro Saint-Gérain, cujo naufrágio inspirou o final épico de Paulo e Virgínia, e a belíssima estátua em mármore de autoria do escultor maurício Prosper D’Epinay. Em visita ao Museu, onde fui com o intuito de aprender mais sobre o romance tão importante para a história da Floresta da Tijuca, ainda que desconhecido da maioria de seus freqüentadores e funcionários, tive o prazer de ser apresentado ao seu diretor e curador, Alain Huron. Especialista em Saint Pierre, Huron surpreendeu-me ao descortinar ainda outra ligação ambiental entre sua pátria e o Brasil. Mostrou-me edição da revista da Royal Society of Arts and Sciences de Maurício, onde há trabalho de autoria de France Staub sobre a primeira palmeira imperial plantada por D. João VI no Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

Staub prova com base em farta documentação, que a muda da primeira Palma Mater plantada no Brasil foi trazida pelo naturalista português Luiz Abreu Vieira da Silva diretamente do Jardim Botânico de Pamplemousses, em Maurício, e não da Guiana Francesa, como é a suposição vigente.

De fato, devido à sua situação geográfica estratégica entre a Ásia e as Américas/Europa, Pamplemousses teve papel fundamental como jardim de aclimação de diversas espécies vegetais transplantadas ao redor do mundo. A fruta pão, o abacate, a noz moscada, o chá e a canela, entre outras, fizeram escala ali antes de serem semeadas em terras do hemisfério ocidental. Até hoje, assim como sua contraparte carioca, o Jardim Botânico de plemousses mantém-se vigoroso e bem cuidado. Pelo seu estado presente, bem como por seu rico passado, merece uma visita.

História não falta a Maurício. Descoberto pelos portugueses em 1507, foi colônia holandesa, francesa e inglesa sucessivamente, antes de conquistar independência. Os Países Baixos, primeira potência colonial, iniciaram também o terrível processo de degradação que devastou o hotspot Maurício. Ao desembarcarem, os marinheiros flamengos foram recebidos na praia por centenas de dóceis pássaros gigantes desprovidos de asas, os dodôs. Triste nome, corruptela de imbecil, dodô indica a passividade com que esses gigantescos primos do pombo se deixavam capturar pelos marujos famintos. Em pouco mais de três décadas o dodô- endêmico de Maurício – extinguiu-se. Foi visto pela última vez em 1660.

Também foi a flamengada que introduziu os ratos, gatos, cachorros, antílopes de Java e porcos selvagens responsáveis por tantas outras extinções de uma fauna substancialmente endêmica e variadíssima. Tendo evoluído em um ambiente sem predadores naturais, os mauricinhos viraram presa fácil para os vorazes animais exóticos.

Mas não foi só a fauna que sofreu. Os colonizadores brancos trouxeram consigo escravos negros e servos indianos, que debaixo de chicote devastaram uma das florestas mais ricas do mundo. Substituíram-na por vastas plantações monocultoras de cana-de-açúcar e baunilha, além de uma miríade de espécies frutíferas, ornamentais e lenhosas dos quatro cantos do mundo, como a goiaba, a casuarina e o eucalipto australiano. Hoje, menos de 1% da floresta maurícia resta intocada em seu estado primário. Considerando que, das cerca de 1000 espécies vegetais da ilha, 30% são endêmicas, trata-se de uma das maiores tragédias ambientais do planeta.

Se em terra a situação é grave, na água tampouco as coisas vão bem. O crescimento desordenado do turismo sem grandes preocupações com saneamento, tem afetado seriamente a barreira de recifes que circunda a ilha. Ademais, a poluição e o assoreamento dos rios estão provocando o branqueamento e a morte dos corais, problema que se intensificou a partir de 1997. Nesse ano, com o objetivo de fazer frente à crescente degradação, foi criado o Parque Nacional Marinho de Blue Bay.

Mas nem tudo é má notícia. Blue Bay não foi medida isolada. A partir da década de 1990, o governo ilhéu começou a desenvolver ações para preservar o pouco que sobrou de sua inigualável natureza, replantando florestas e manguezais e estabelecendo unidades de conservação. Em 1994, criou o Parque Nacional das Gargantas do Rio Negro, cujos 6.574 hectares protegem quase todo o remanescente de floresta primária de Maurício. O Parque tardou, mas ainda chegou a tempo de salvar algumas espécies outrossim fadadas ao desaparecimento, como o periquito eco, que tem nas Gargantas do Rio Negro seu habitat preferido.

Outras formas efetivas de proteção incluem as reservas de caça, onde é permitido o abate de animais exóticos, tais como porcos selvagens e antílopes de Java, mas é vedada a caça às espécies nativas. Com efeito, os 950 hectares da maior delas, a Domaine du Chasseur, provêm um santuário para o kestrel de Maurício, uma das aves de rapina mais ameaçadas do planeta. Ao permitir a erradicação dos animais introduzidos, a Reserva faz um duplo trabalho em prol da preservação, pois reduz a quantidade de predadores não nativos, ao tempo em que viabiliza economicamente a manutenção de um ecossistema importante para a sobrevivência de espécies endêmicas. O caso do kestrel é exemplar. Em meados da década de 1970, devido à perda de habitat, sua completa desaparição da face da terra parecia irreversível. A população foi reduzida a meros 6 indivíduos. Programas de procriação em
cativeiro, aliados à preservação de florestas em Reservas de Caça, contudo, proporcionaram sua salvação. Hoje há em Maurício cerca de 1000 kestrels (para uma análise mais profunda do papel das reservas de caça na preservação, ver as quatro colunas do professor Marc Dourojeanni sobre Manejo da Fauna, aqui em O Eco.

Também é digno de louvor o trabalho desenvolvido pela Mauritian Wildlife Foundation (MWF) nos pequenos 26 hectares da Ilha dos Aigrettes. Ali, desde 1985, ambientalistas têm buscado eliminar as espécies exóticas de animais e vegetais. O manejo da ilha objetiva criar um santuário para a reintrodução de espécies nativas do hotspot hoje ameaçadas de extinção. Os resultados falam por si só: 90% da flora invasora já foi substituída por espécies nativas. Um breve passeio pela ilhota permite avaliar a rápida recuperação de mais de duas dezenas de exemplares da flora, endêmicos de Maurício, ali replantados, além dos ameaçadíssimos lagarto Telfair, da tartaruga de Aldabra e do pombo rosa, espécie da qual só restavam 10 indivíduos em 1990. Hoje, graças aos esforços da MWF, que tem protegido seus ninhos dos ataques de ratos e macacos (trazidos da Índia no século XIX e erradicados da ilha dos Aigrettes em 1991), a população do pássaro já soma quase meio milhar.

Como se vê, o verdadeiro espírito de Paulo e Virgínia parece estar voltando à Ilha Maurício. Talvez seja impossível recuperar o ecossistema à plenitude do que o romancista americano Mark Twain viu em 1896, quando escreveu que “Deus modelou Maurício no paraíso”. Ainda assim, é alentador constatar que o esforço conjunto do governo e da comunidade ambientalista já está vestindo Maurício das Mascarenhas com uma roupagem viçosa o suficiente para que, em breve, volte a fazer sucesso com as “Patrícias”.

Em tempo: Por intermédio do colunista, O Eco estará doando um exemplar em inglês de “Paulo e Virgínia” para a Biblioteca do Parque Nacional da Tijuca. Assim, finalmente, seus freqüentadores poderão conhecer a história que inspirou a mais famosa gruta da Floresta.

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