A onda crescente de informalidade que atinge a economia brasileira é dramática. A construção de casas, os negócios e o trabalho dos brasileiros acontecem cada vez mais fora das leis. Na última quinta-feira, debateram o assunto na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC – Rio), o economista André Urani, o empresário Emerson Kapaz, e o sociólogo Marcelo Burgos.
Eis uma tentativa de sintetizar as opiniões que convergiram durante o debate. As camadas populares no Brasil não têm associações que as representem e, por isso, as leis que regulam a vida do povão não estão de acordo com os costumes nem com o seu bolso. Está muito caro e difícil, devido ao peso dos impostos e da burocracia, erguer uma casa, abrir um negócio ou contratar um empregado. Além disso, são escassos os serviços que os pequenos empresários e trabalhadores por conta própria precisam para ser produtivos. Faltam cursos técnicos, crédito para investimento e até infra-estrutura, como energia e telefone.
Resultado, a produtividade dos negócios informais é a metade da dos formais. Eles só sobrevivem porque sonegam impostos e ignoram a burocracia e as leis. Assim, hoje, quase 60% das famílias brasileiras são chefiadas por um trabalhador informal e, praticamente, toda cidade brasileira tem sua favela. Estamos lentamente submergindo na informalidade e, embora o problema seja nacional, o Rio de Janeiro é a cidade onde ele é mais visível. Não é pra menos, 30% dos habitantes do município habitam favelas ou loteamentos ilegais, onde são gerados 8% dos empregos da cidade.
O excesso de leis e a burocracia morosa empurram as atividades econômicas para a informalidade, e fazem com que sejam descumpridas mesmo aquelas regras que são necessárias e melhoram o bem-estar de todos. É o típico caso em que se joga fora a água e o bebê. Ou, colocando de outra forma, é o caso em que a lei pode causar o efeito oposto do que pretende.
Os exageros das leis ambientais brasileiras têm o mesmo efeito. Elas formam uma malha tão intrincada que os pequenos empresários tem grande dificuldade em saber que regras devem obedecer. Até descobrir qual o nível de governo (municipal, estadual ou federal) os regula é um quebra-cabeça complicado.
Conversando com Adriana Bocaiuva, pesquisadora do NIMA (Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente da PUC – Rio), surgiu a seguinte situação. Imagine uma ecologista carioca com vocação para os negócios. Ela tem a idéia de vender perfumes de essências florais da Mata Atlântica, área de interesse da sua ong ambiental. Com o negócio, poderia financiar suas atividades filantrópicas e estimular a consciência ecológica dos consumidores. Um local fantástico para abrir uma perfumaria desse tipo seria a estrutura de apoio embaixo da estátua do Cristo, no Corcovado. Local por onde passam anualmente 700 mil turistas. Ela vai lá e consegue um espaço para abrir sua loja.
Disposta a cumprir todas as exigências da lei, surge a questão: sua atividade precisa de algum tipo de licenciamento ambiental? Ela consulta um advogado. A análise jurídica que recebe é a seguinte. Uma perfumaria deveria ser considerada uma atividade de impacto local. Pode até gerar um cheiro bom nas redondezas da loja, graceja o advogado. Por isso, seguindo essa linha, a maioria das atividades de impacto local, não precisa de licenciamento ambiental. E mais, pela interpretação mais direta da Constituição Federal, devem ser reguladas pelo poder municipal. No caso, a Prefeitura do Rio.
Mas aí, continua ele, as coisas começam a se complicar. Em primeiro lugar, a lei não é suficientemente clara para sabermos se o impacto da sua perfumaria pode ser considerado local ou não. Segundo, o município do Rio não tem lei de licenciamento ambiental. Terceiro, embora o Parque Nacional da Tijuca, onde fica a estátua do Cristo, esteja dentro do município do Rio, é terra federal. O responsável pelo que acontece lá dentro é o Ibama. Logo, esse é o órgão a ser consultado sobre o licenciamento. Conclusão: sua perfumaria é regulada por Brasília.
Eis um cenário possível. Nossa empresária ecológica toma fôlego e vai, então, bater às portas do Ibama, perguntar como deve proceder. A resposta a surpreende. Apesar da atribuição ser sua, por sobrecarga e bom senso, o Ibama delega casos como esse ao órgão estadual de meio ambiente, a Feema. Meia volta, volver. Ela leva sua consulta a Feema: preciso ou não de licença ambiental para abrir minha loja? A resposta dessa vez é: não sei, mas, por via das dúvidas vamos fazer o licenciamento. É preferível errar por excesso que por omissão. A legislação é tão confusa que, hoje, quando consultados, licenciamos até carrocinha de pipoca. Nem mesmo nós sabemos dizer ao certo qual é a interpretação correta da lei. Quanto tempo vai demorar, pergunta a candidata a empresária? Não dá para precisar, responde o funcionário que a atende. No mínimo dois meses, talvez um ano. Desanimada, a ecologista desiste do negócio.
No dia seguinte, para espairecer vai até a estrada das Paineiras, que passa aos pés da estátua do Cristo. Para o carro e sai para uma caminhada. A cerca de 500 metros de altura, admira o mar e as montanhas escarpadas do Rio. Aprecia o verde que as recobre e lamenta o pontilhado das favelas que de lá avista. A vida nelas não só é precária, como também, diariamente, avançam mais um pouquinho sobre as florestas das encostas. No fim da caminhada, observa os turistas que chegam para visitar a estátua. Pensa na loja que desistiu de realizar. Para relaxar, compra um refrigerante no ambulante informal, que nos fins de semana trabalha na beira da estrada, onde os carros costumam parar. Ele habita uma favela próxima e, no fim do dia, joga o lixo que sobra no mato.
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