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Nas origens do horror às florestas

A noção de civilização nasceu há seis mil anos na Mesopotâmia como oposição à natureza. É um pensamento ainda predominante, cujo produto final será o colapso.

23 de fevereiro de 2005 · 20 anos atrás

“Gilgamesh ouviu seu companheiro. Ele tomou o machado em sua mão, desembainhou a espada e acertou Humbaba com uma estocada no pescoço. Seu companheiro Enkidu golpeou-o uma segunda vez. Na terceira investida Humbaba tombou. Seguiu-se então uma grande confusão, pois este a quem eles haviam morto era o sentinela da floresta. Por duas léguas os cedros estremeceram quando Enkidu abateu o vigia da floresta…As montanhas e todas as colinas se achavam agora agitadas e comovidas, pois o guarda da floresta fora morto. Eles atacaram os cedros. Os sete esplendores de Humbaba se extinguiram. Eles então prosseguiram floresta adentro carregando a espada de oito talentos… e enquanto Gilgamesh abatia as árvores da floresta, Enkidu ia limpando suas raízes até as margens do Eufrates”.

Estas palavras foram escritas em tabuas de argila há mais de quatro mil anos, fazendo parte do que hoje conhecemos como “Epopéia de Gilgamesh”, provavelmente a mais antiga obra literária de que se tem notícia. O leitor contemporâneo, inclusive o brasileiro, tem muitas razões para se emocionar com este relato. Ao contrário do que parece, esse texto escrito em época tão remota, na região que mais tarde ficou conhecida pela palavra de origem grega “Mesopotâmia” – de mesos (meio) e potamos (rios), por existir entre os rios Tigre e Eufrates – não está tão distante de nós em termos culturais e históricos.

O Oriente Médio e a Europa mediterrânica, do ponto de vista da formação histórica de longa duração, podem ser vistos como dois pólos muito próximos de um mesmo complexo geográfico-histórico. Vários analistas, aliás, radicalizam essa leitura, afirmando que a Europa deve ser visualizada, na geografia histórica da humanidade, como uma espécie de península de um continente maior, que muitas vezes é chamado de Eurásia. Alguns radicalizam ainda mais, defendendo uma interligação histórica profunda entre a Eurásia e a África, formando um enorme complexo geo-histórico no Centro-Leste do planeta, que precisa ser estudado em conjunto para ser entendido de maneira apropriada. Em outras palavras, a imagem de forte distinção cultural consagrada na oposição Ocidente versus Oriente é uma construção moderna, fruto de uma combinação entre acasos históricos e esforços politicamente conscientes de diferenciação. Roger Garaudy tratou desse tema em um livrinho com titulo bastante sugestivo: “O Ocidente é um Acidente”.

De toda forma, trocando a coisa em miúdos mais visíveis, não é difícil observar que o grande pólo criador de cultura, inclusive de cultura ecológica, nos primeiros milênios de construção do complexo geo-histórico “ocidental” não foi a Europa e sim o Oriente Médio. É no chamado “Crescente Fértil” da antiguidade, que inclui partes do que hoje conhecemos como Egito, Palestina, Síria e Iraque, que foram domesticados os animais e plantas que dominaram mais tarde a paisagem do Mediterrâneo europeu. É de lá, ou de territórios ainda mais orientais, que vieram os trigais, as videiras, as oliveiras, as vacas, os cavalos, as ovelhas e de quase todos os principais instrumentos vivos que marcaram a construção do ambiente rural europeu (na confluência entre a ação humana e os espaços/elementos da natureza).

Basta ler as primeiras páginas do “Gênesis”, além disso, onde aparecem os rios Tigre e Eufrates como fazendo parte do Jardim do Éden, para perceber que é também no Oriente Médio que vamos encontrar o berço geográfico das tradições religiosas que, através de sua variante judaico-cristã, marcaram tão profundamente a identidade cultural e histórica da Europa. Tradições religiosas que, como tudo na vida, possuem uma dimensão ecológica. Religiões do pão, do vinho, do cordeiro e por aí vai.

Com a conquista posterior das Américas – o verdadeiro Ocidente do planeta – pelos europeus, todo esse conjunto de elementos orgânicos, econômico-ecológicos, culturais e religiosos difundiu-se para as colônias, misturando-se com elementos naturais e praticas econômico-ecológicas e/ou culturais nativas ou importadas de outras regiões, especialmente da África e da Ásia.

Na encruzilhada histórica que construiu os países do “Novo Mundo”, as plantas e animais originados do complexo Oriental/Mediterrânico tiveram sucesso diferenciado no que se refere à sua adaptação ao contexto social e ecológico local. Evaldo Cabral de Mello, por exemplo, em seu belo artigo “Nas Fronteiras do Paladar”, demonstrou a insistência dos colonos portugueses no Nordeste em consumir a farinha de trigo, que acabou inviabilizado pelo custo da sua importação e as dificuldades ecológicas da sua produção, abrindo espaço para a continuidade do plantio e difusão da mandioca pré-colonial. Já a introdução de bois e cavalos, especialmente dos primeiros, foi um sucesso extraordinário, que acabou se tornando um fator mais essencial do que se imagina para a conquista do território. De qualquer maneira, a dominância sócio-cultural, e em grande parte ambiental, dos padrões europeus na formação do que viria a ser o Brasil, já é suficiente para justificar a afirmação de que Gilgamesh não está tão longe de nós como parece.

Mas existe outro aspecto ainda mais profundo, que diz respeito à própria trajetória da humanidade no planeta. Foi no Crescente Fértil, especialmente na Mesopotâmia, que ocorreram pela primeira vez duas transformações cruciais na evolução do ser humano. Por mais de 2,5 milhões de anos, desde a emergência do Homo habilis na África, os humanos, ou proto-humanos, viveram em bandos pequenos e nômades, compartilhando o mesmo padrão econômico dos outros animais, ou seja, a coleta e a caça de elementos livremente presentes na natureza. Mesmo com as transformações fisiológicas e culturais que deram origem ao Homo sapiens sapiens, há cerca de 50.000 anos, esse padrão básico permaneceu em vigor. A partir do final da ultima grande glaciação, no entanto, que durou mais ou menos de 70. 000 a 12.000 anos atrás, começou a ocorrer uma ruptura econômico-ecológica decisiva, com o aparecimento das primeiras aldeias agrícolas.

Das muitas dimensões e possibilidades desse assunto tão complexo – as múltiplas causas e conseqüências sociais e ecológicas do aparecimento da agricultura – desejo focalizar apenas um, que me é especialmente caro em termos emocionais e intelectuais: as origens, pelo menos na história “ocidental”, daquilo que Gilberto Freyre chamou de “estado de guerra entre o homem e a mata”. Esse é o tema central de um dos mais belos livros publicados nas ultimas décadas, apesar de pouco conhecido e ainda inédito no Brasil. Em “Forests: The Shadow of Civilization”, o historiador da literatura Robert Harrison, professor da Universidade de Stanford, produziu uma história erudita e poética das metamorfoses do olhar humano sobre as florestas, tal qual se pode observar na herança literária e pictórica da humanidade. Mesmo que excessivamente centrado na tradição cultural européia e, em menor escala, norte-americana, o livro abre um novo horizonte para compreender os dilemas da nossa relação com este grande “outro” da sociedade humana, que é o espaço das florestas e da vida selvagem.

O ponto de partida de Harrison é um macro-fenômeno biofísico que precisa ser claramente demarcado. Com o aquecimento climático ocorrido no final da já mencionada grande glaciação, as florestas voltaram a expandir-se nos vastos espaços do Hemisfério Norte, muitos dos quais estavam antes cobertos pelo gelo. A grande novidade, no entanto, foi sociológica. Ao contrário dos bandos de caçadores-coletores, que adaptaram-se relativamente bem ao mundo do gelo, as novas comunidades agrícolas possuíam um antagonismo essencial com as florestas. Nas palavras do autor, “a maioria dos lugares de habitação humana no Ocidente foram em algum momento do passado mais ou menos densamente florestados”, de tal maneira que “a civilização ocidental literalmente abriu seu espaço através de clareiras no meio das florestas. Uma franja silvestre de escuridão definiu os limites do seu cultivo, as margens das suas cidades, as fronteiras do seu domínio institucional e também a extravagância da sua imaginação”. Qual foi a conseqüência central deste grande cenário histórico? Harisson a resumiu em uma afirmação forte e desafiadora: “as instituições centrais do Ocidente – religião, lei, família, cidade – estabeleceram-se originalmente em oposição às florestas, que nesse aspecto têm sido, desde o inicio, as primeiras e ultimas vitimas da expansão cívica”.

Aceitar e compreender esse fato é crucial para entender os dilemas atuais de nossa relação com as florestas. O estado de guerra entre o homem e a mata não é, obviamente, uma peculiaridade do Brasil, apesar da condição colonial de sua formação, como procurei demonstrar em meu livro “Um Sopro de Destruição”, ter potencializado a vigência de alguns padrões especialmente predatórios de comportamento econômico. A verdade, porém, é que o conjunto do que chamamos de “civilização” constituiu-se a partir da negação das florestas. A consciência da necessidade de conserva-las, portanto, é uma atitude mental historicamente revolucionária, na medida em que se choca com visões, praticas e culturas de dominância multimilenar.

Para desenvolver um pouco melhor esse quadro, é preciso lembrar que mencionei acima a existência de “duas transformações” fundamentais que ocorreram pela primeira vez no Oriente Médio. O aparecimento da agricultura, a primeira delas, não resume tudo. O mundo das primeiras aldeias agrícolas independentes, apesar de fundado na sedentarização e na criação de territórios permanentemente “clareados” e abertos para determinadas comunidades, ou seja, abertos de vegetação e vida selvagens, apresentava claros limites para um rompimento radical com a natureza e com os ecossistemas locais. Ao contrário, eram sociedades pequenas e frágeis, permeáveis ao contato direto com o mundo “natural” que as rodeava, do qual dependiam em inúmeros sentidos (é preciso lembrar, inclusive, que as primeiras comunidades agrícolas continuaram a depender também da caça e da coleta).

Um indicador dessa condição sócio-ecológica, segundo vários historiadores, pode ser buscado no próprio caráter da religiosidade dominante nas aldeias arcaicas. Um tipo de religiosidade, aliás, que já aparece nos registros pictóricos do paleolítico superior, fazendo uma ponte entre os últimos grupos exclusivamente caçadores-coletores e as primeiras sociedades parcialmente agrícolas. Uma das características centrais dessa religiosidade é justamente a de estar intimamente colada na ecologia terrestre, direcionando sua devoção para deusas femininas e maternais, mesmo que muitas vezes vingativas e terríveis, que manifestavam-se através de cavernas, cursos d’água, plantas, animais etc. Ou seja, uma religiosidade material e concreta, plena de espíritos protetores que existiam no interior dos movimentos da natureza e asseguravam, entre outros benefícios, o sucesso das colheitas.

É importante frisar que não estou defendendo aqui a imagem romântica de que tais comunidades formavam um paraíso original de adoradores da natureza e ecologistas primitivos. Basta lembrar que o desflorestamento estava na base mesma das suas atividades agrícolas rudimentares. Ou seja, encontram-se exatamente aqui as origens históricas da marcha desflorestadora da humanidade ocidental – que também existiu em outras partes do planeta, bem entendido, através de processos semelhantes ou diferentes que não podem ser abordados no espaço desse artigo. Penso ser possível afirmar, entretanto, com base nas pesquisas mais recentes, que existiam limites concretos para a capacidade de destruição ambiental daquelas comunidades, seja em termos tecnológicos, organizativos ou ideológicos.

O mundo da “Epopéia de Gilgamesh”, que começa a aparecer na Mesopotâmia cerca de 6.000 anos após o surgimento das primeiras aldeias agrícolas, é bastante diferente em grau e qualidade. É o mundo dos primeiros estados agrícolas e cidades fortificadas. Um mundo de sociedades mais estratificadas e centralizadas, de economias definidas por maior divisão de trabalho e controle aristocrático-sacerdotal dos meios de produção. É também o mundo dos primeiros textos escritos em letras abstratas, das primeiras evidencias mais fortes de domínio do homem sobre a mulher, da presença marcante de deuses masculinos e celestes, como fica claro na imagem posterior do “Senhor dos Exércitos” dos Hebreus, de evidente origem mesopotâmica. Em suma: um mundo que define com muito mais precisão os contornos daquilo que costuma ser entendido como a “história da civilização”. Tanto é assim que muitos historiadores ainda definem esses estados agrícolas e suas primeiras cidades muradas como sendo o “nascimento da história”, jogando no curioso rotulo de “pré-história” alguns milhões de anos da trajetória humana sobre a Terra.

De qualquer forma, esses estados agrícolas intensificaram enormemente a extração de recursos naturais ao nível regional. Pode-se imaginar, no contexto das tecnologias disponíveis, os impactos ambientais da construção dos primeiros grandes palácios e tempos de pedra, sob o domínio de elites aristocrático-sacerdotais dotadas de um padrão de consumo ineditamente elevado. É nesse contexto que devemos entender o relato que abre o presente artigo. Ele deveria nos emocionar, disse acima, como membros da humanidade ocidental e também, digo agora, como leitores d’O Eco, interessados nos dilemas ambientais do presente. É espantoso ler no mais antigo texto literário que se conhece, no relato mesmo das origens de nossa civilização, a descrição heróica e positiva de uma agressão ambiental explicita.

Como explica o historiador N. K. Sandars, “a necessidade que as cidades tinham de madeira é a razão de todo o empreendimento. Gilgamesh, o jovem rei de Uruk, desejava ostentar seu poder e ambição construindo templos e muralhas…Mas nas montanhas viviam tribos desconhecidas que opunham resistência a qualquer tentativa de remoção dos cedros pela força. Era preciso lutar para que a valiosa mercadoria fosse embarcada para Uruk, e na batalha os deuses das tribos da floresta lutavam por trás do seu próprio povo”. Deuses da floresta que, como o vigia Humbaba, davam continuidade à tradição dos deuses e deusas das primeiras comunidades agrícolas, que habitavam o seio mesmo dos ecossistemas.

A cidade de Uruk, como se pode ver na reprodução abaixo, apresentava uma novidade arquitetônica de grande relevância para a história ecológica global. Ela representa os novos espaços urbanos cercados por muralhas, que dividem claramente o mundo da civilização e, “lá fora”, o mundo da natureza. Como diz Harisson, “se Gilgamesh resolve matar o demônio da floresta, e desflorestar a montanha de cedros, é porque a floresta representa a quinta-essência do que está para além dos muros da cidade, a terra em sua permanente transcendência. A floresta incorpora uma lei outra e mais antiga do que a lei da civilização…Gilgamesh vai em direção à floresta como quem vai à verdadeira fronteira da civilização”. Ou então, diríamos nós, da afirmação da civilização pela inconformidade com a paisagem natural e selvagem.

Maquete da cidade-estado de Uruk [3500 AC]

Estamos diante, portanto, de um documento notável, que delineia as origens de muito do que mais tarde veio a ser definido como “civilização” e “modernidade”. Em Gilgamesh, por exemplo, é possível ver a emergência da afirmação social do individuo – vale lembrar que a grande motivação do herói é realizar façanhas que consagrem eternamente seu nome na memória coletiva – do pretenso isolamento da cidade como espaço artificial que caracteriza a nobreza do viver social e, longe de ser o fator menos importante, do horror às florestas, da sua negação ativa em nome do domínio humano sobre a Terra.

O problema é que, sob o prisma da historiografia atual, pode-se afirmar cada vez mais que as cidades-estado da Mesopotâmia inauguram não apenas a cultura explicita da negação das florestas como também, ironicamente, a experiência dos desastres ecológicos, das conseqüências trágicas da destruição florestal. O desflorestamento das cabeceiras e margens dos rios, a salinização dos solos por obras agressivas de irrigação e o esgotamento de terras antes férteis, provocando no limite a desertificação, marcou profundamente a história econômico-ecológica daquela região, sendo em grande parte responsável pelo débâcle civilizatório que nela observamos.

Muitos dos desertos que hoje observamos nas imagens da guerra no Iraque – que ironicamente também atualiza outro traço permanente e marcante da “civilização”, a guerra de conquista territorial – foram no passado remoto parte do “Crescente Fértil” da antiguidade. Aqueles desertos, e suas conseqüências sociais, foram em grande parte criados pela ação humana. Quem quiser saber mais sobre o assunto, pode ler “Collapse: How Societies Choose to Fail or Succeed”, o ultimo livro de Jared Diamond, que descreve a queda de vários tipos de civilização ao longo da história, tendo a destruição ambiental como um dos seus fatores centrais. O colapso das antigas civilizações da Mesopotâmia é um dos seus casos favoritos.

O nosso estadista-filósofo José Bonifácio, com uma mirada visionária de historiador ambiental, percebeu claramente que a decadência civilizatória do antigamente poderoso Oriente Médio não podia ser divorciada da degradação de suas condições ambientais. Assim ele afirmou, em um texto de 1815: “todos os que conhecem por estudo a grande influência dos bosques e arvoredos na economia geral da natureza sabem que os países que perderam suas matas estão quase de todo estéreis e sem gente. Assim sucedeu a Síria, Fenícia, Palestina, Chipre, e outras terras, e vai sucedendo ao nosso Portugal”. A lição, aliás, deveria ser aprendida pelos brasileiros, pois a destruição florestal ameaçava transformar o nosso território em algo que ele definiu em um texto posterior, de 1823, como sendo semelhante aos “paramos e desertos áridos da Líbia”.

Estamos aqui, portanto, em um outro momento histórico, que ainda deve ser o nosso. O momento em que o pensamento moderno, com base na observação das conseqüências históricas da devastação ambiental, se dá o direito de questionar milênios de cultura humana dominante e afirmar, subversivamente, que tomar as florestas como uma sombra a ser destruída é o caminho do colapso. O caminho da sobrevivência, ao contrário, deve ser o de considerá-las como nossas vizinhas e supridoras. Em outras palavras, ao invés de vê-las como uma franja de escuridão ao nosso redor, aprender a reconhecê-las como nosso colchão benéfico e imprescindível de inspiração, sustento e garantia de vida.

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