Estreamos a coluna em O Eco com um desafio interessante. Aliar duas linguagens distintas para transmitir análises completas, mas nem por isso complexas, baseadas na produção acadêmica em economia e outras áreas do conhecimento. Vamos unir a linguagem acadêmica das pesquisas e estudos científicos a uma linguagem jornalística.
Como ponto de partida, podemos lembrar que já se passaram quatro meses desde a tragédia do assassinato da missionária Dorothy Stang. Muita gente que, na época, se indignou com um ato tão covarde e provocador, agora já deve ter engavetado o assunto num daqueles cantos mais remotos das nossas lembranças. Mas ainda assim, os conflitos amazônicos continuam nas primeiras páginas dos jornais, e a bola da vez é a homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Não vamos discutir agora o que está por trás da confusão armada em torno dessa tentativa de privatização espúria de terras públicas, autêntica “privataria” cabocla manipulada por um conluio de brancos e índios que, para benefício patrimonial próprio, ameaça tanto a preservação da cultura indígena, quanto a rica biodiversidade local – trata-se de uma região de elevado endemismo de espécies de flora e fauna.
Vamos sair um pouco da rotina e nos antecipar para uma provável manchete num futuro próximo: “Desmatamento na Amazônia atinge níveis recordes”. Os dados oficiais do desmatamento ainda não estão disponibilizados, mas há grande consenso entre os especialistas de que a perda de áreas florestadas cresceu consideravelmente nos últimos dois anos. Não será nenhuma surpresa se os dados mostrarem uma grande perda de floresta principalmente onde a produção agropecuária mais avançou, em especial no Mato Grosso.
O que está acontecendo? Nada de novo no front! Aproveitando o baixo custo da terra, expande-se consideravelmente as áreas de plantio ou pastagem, e o resultado sai bonito nas páginas de economia: “Brasil alcança novo recorde na safra de grãos”. Os governos federal e estadual comemoram o aumento das exportações e de arrecadação tributária, prometem novos investimentos para aumentar o “desenvolvimento” da região, o que significa quase sempre mais estradas ou outros meios de baratear o transporte da produção local para o resto do mundo. Alguns menos informados deixam-se levar pela balela de que “o agronegócio está gerando mais empregos no Brasil”. Tudo parece festa na ex-floresta.
Mas as feridas que este processo abre são tão profundas que, em algum momento, acabam vindo à tona. Periodicamente as crises gêmeas causadas por esse processo voltam ao debate público. Por que chamamos de “crises gêmeas”? Porque são manifestações geradas pelo mesmo processo de ocupação da terra (violência rural) e expansão da fronteira agrícola (desmatamento). Será que ninguém se pergunta como foram gerados os sucessivos recordes de produção de grãos? É claro que às custas dos biomas onde essa fronteira se expande, e das populações tradicionais que neles vivem.
O Cerrado é hoje um hotspot – área sob grande ameaça de extinção de espécies –, e o risco agora se estende à Floresta Amazônica. Transformada em latifúndios voltados para a pecuária extensiva ou monocultivo mecanizado, a paisagem perde seu elemento natural sem que o componente humano seja facilmente encontrado – muita destruição para poucos empregos, visto que as atividades “modernas” são poupadoras de mão de obra. Ao elevar o preço da terra nas regiões onde a produção agropecuária prospera, fomenta-se a “produção” de mais direitos fundiários, através da “privatização” de terras públicas visando sua posterior venda. Ou será que alguém ainda acredita que os neoproprietários de Raposa Serra do Sol não estão interessados nos lucros da venda dos lotes que hoje protestam como seus?
É claro que alguns grupos tentam resistir ao processo, mas o lema de que “os incomodados que se mudem” é implacávelmente aplicado, como demonstram as tragédias de Xapuri, Anapu e outras menos célebres, mas não menos dramáticas. O incrível é que, apesar da vasta literatura sobre isso, os responsáveis pela política agrícola do país ainda resistem a aceitar o óbvio.
Um exemplo visível desse comportamento é a análise do Ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, sobre o impacto ambiental da expansão da fronteira agrícola. Em entrevista ao jornalista Celso Ming / O Estado de S. Paulo, o ministro disse que “não é o fazendeiro quem destrói a floresta. Quem destrói são as madeireiras. O pecuarista e o agricultor chegam depois que está tudo destruído”. Ele também argumenta que isso está baseado em um estudo técnico. “Não sou eu quem está dizendo isso. Esta é a conclusão de estudos feitos pelos economistas do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)”. Ao ser questionado se essa visão era contrária à de uma entrevista sobre o assunto, publicada dois dias antes no mesmo jornal, Rodrigues respondeu: “Ele deve discutir isso com os economistas do IPEA”.
Vamos analisar o que diz o estudo dos economistas do IPEA. O trabalho “Crescimento Agrícola no Período 1999-2004, Explosão da Área Plantada com Soja e Meio Ambiente no Brasil” dos pesquisadores Antonio Salazar Pessoa Brandão, Gervásio Castro de Rezende e Roberta Wanderley da Costa Marques, publicado em janeiro deste ano, analisa o crescimento agrícola brasileiro recente e mostra o grande crescimento da área plantada com grãos, o que aconteceria, em grande parte, devido à expansão da soja. Os pesquisadores admitem também que a tendência recente dos preços internacionais da soja é declinante, e que a expansão acelerada dos últimos anos teve como uma das causas, problemas conjunturais na safra norte-americana que, uma vez sanados, criaram um excesso de oferta no mercado. Porém, não admitem que a expansão da soja tenha resultado em mais desmatamento no Cerrado sob o argumento de que a rápida expansão da área plantada aconteceu, principalmente, com base na conversão de pastagens para áreas de plantio. As evidências empíricas apresentadas no estudo são insuficientes para comprovar tal tese, e o raciocínio é que o cultivo da soja se dá apenas em áreas já previamente convertidas para pastagens e ainda assim o efeito sobre o desmatamento só seria nulo se as áreas de pastagem diminuíssem na mesma quantidade! Nenhuma das duas assertivas se verifica: um recente estudo do grupo de trabalho sobre florestas do Fórum Brasileiro de Ongs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, demonstra claramente que boa parte da expansão da soja ocorreu em áreas previamente florestadas e área total de pastagens cresceu, como mostram as fotos de satélite da região.
Apesar do argumento que a soja só se expandiu por conversão de áreas de pastagens, como analisa o ministro Roberto Rodrigues, o resultado final foi o deslocamento da pecuária para novas áreas de florestas. A fronteira avançou, e, com certeza, os dólares da exportação de soja contribuíram bastante para isso. O processo é dinâmico, e não podemos observar os agentes isoladamente, parados no tempo. Os lucros são acumulados privadamente, mas os prejuízos são coletivizados. E não será espantoso que, em algum momento do futuro quando a sobreoferta de soja significar uma queda da lucratividade de suas atividades, os fazendeiros batam na porta de seu ministro para pedir subsídios…
Mas alguém tem que levar a culpa, e o papel de vilão identificou-se na figura do madeireiro. Embora sendo uma peça importante, ele não é o “agente solitário” do desmatamento, nem mesmo seu ator principal. Ele atua como o rompedor, atingindo primeiro as áreas de floresta ainda intocadas. As florestas tropicais se caracterizam pela grande diversidade de espécies, com baixa densidade de indivíduos por unidade de área, ao contrário das florestas temperadas, que têm grande homogeneidade. Apenas um número bastante reduzido de árvores desperta interesse comercial ao madeireiro, pois o preço de venda tem que compensar todos os custos envolvidos na extração e transporte das toras até algum lugar de comercialização. Assim, o trabalho do madeireiro é extrair as espécies que lhe interessam, e acaba derrubando tantas outras pela própria queda da árvore e pelo arrasto até um rio ou estrada, onde a tora será encaminhada ao mercado. Uma vez concluída a extração, ele abandona a área em questão – não exatamente por consciência ecológica, mas porque não faz sentido gastar tempo e dinheiro para derrubar ou queimar árvores que não vão lhe garantir lucro. Caso não haja intervenção posterior, a floresta abandonada acaba se regenerando, pois novas árvores crescerão nas clareiras abertas onde as árvores foram derrubadas.
O principal dano direto causado por essa situação é a alteração da composição da flora, pois as espécies que acabam se regenerando não são necessariamente as mesmas que foram derrubadas. Por exemplo, o mogno é uma espécie de grande dificuldade de regeneração após seu corte, podendo ter a população ameaçada por causa da extração intensa. Mas a floresta não desaparece “sozinha”.
O que determina o fim da floresta é a sua conversão para pastagem ou cultivo, o que requer que a biomassa que não foi extraída pelo madeireiro seja “limpa” (um eufemismo, pois nada mais sujo do que uma floresta recém queimada!). E isso só será feito se houver interesse agropecuário por aquele terreno. Ao contrário do que apregoam alguns, os pequenos produtores são tão ativos quanto os grandes proprietários no processo de conversão. A “produção” de direitos de propriedade nas áreas de “ponta” da fronteira envolve riscos como a violência, doenças pela falta de assistência médica, carência de serviços sociais, isolamento, e o grande produtor comercial não está disposto a encarar – é preferível comprar a terra depois que esses riscos são minimizados, e o pequeno “desbravador” se desloca para novas áreas de floresta a derrubar.
Assim, o madeireiro sozinho não pode ser responsabilizado pelo desmatamento em larga escala, pois sua ação é localizada e seus efeitos temporários. Mas ao abrir os caminhos na floresta para retirada das árvores, acaba criando estradas para a penetração de agricultores e pecuaristas que concretizam o fim da floresta. Vale lembrar que os custos de transporte são determinantes para a rentabilidade das atividades econômicas: ao abrir uma estrada se reduz os custos de extração e transporte da madeira, bem como os custos da pecuária e do cultivo. Estradas são alimentadores deste processo, e é por isso que os ambientalistas se preocupam tanto com as conseqüências da abertura ou melhoria de estradas em áreas preservadas.
Outro equívoco dessa análise é supor que o “madeireiro” é uma pessoa diferente do “agricultor” ou do “pecuarista”. Essas três figuras se confundem. Eles podem ser a mesma pessoa, ou atuar de forma combinada. Por exemplo, o pecuarista permite que o madeireiro explore as áreas de floresta remanescente em sua propriedade em troca de “limpeza” de terreno, reforma de pasto ou simplesmente dinheiro. Deve-se sempre ter em mente que, para o agricultor ou o pecuarista, a floresta é um problema e sua eliminação um custo, por isso, um hectare de terra limpa costuma ser mais caro que um hectare de floresta. Portanto, a ação desses agentes é integrada, e culpar isoladamente uma das partes não adianta nada.
Aliás, o excelente artigo de Diogo de Carvalho Cabral, publicado pela revista Ciência Hoje (nº 212 – jan/fev/05), mostra que esse tipo de relação vem dos tempos coloniais, e reproduz a triste sina da Mata Atlântica. Examinando a atividade madeireira na província do Rio de Janeiro nos séculos XVIII e XIX, mostra que a grande maioria da extração era efetuada pelos próprios produtores agrícolas, numa forma interativa entre os grandes senhores de engenho e os pequenos produtores de subsistência: “No Brasil colonial, salvo raras exceções, o pequeno produtor rural não pode estabelecer um vínculo de cooperação com o ambiente. Não havia tempo para isso, e ele não podia perder nenhuma oportunidade de extrair da natureza qualquer mercadoria que lhe proporcionasse bons rendimentos no momento da troca. Afinal de contas, ele nunca sabia quando o senhor de engenho o expulsaria de suas terras e o deixaria à deriva pelo sertão. Em outras palavras, a extrema instabilidade e precariedade do assentamento parece ter produzido um veículo de saque entre o pequeno produtor de subsistência e o ambiente. O fenômeno da indústria comercial representava, assim, apenas uma manifestação particular dessa relação geral”.
Pena que as mudanças tenham sido tão ínfimas daquela época para hoje…
*Carlos Eduardo Young é economista, professor de Economia do Meio Ambiente da UFRJ e Doutor em Economia pela University College London.
*Priscila Geha Steffen é paranaense, jornalista ambiental e também colunista de música brasileira do Jornal do Estado, no Paraná.
Referência
Para ler: Economia do Meio Ambiente – Teoria e Prática (Rio de Janeiro: Elsevier, 2003), Maria Cecília Lustosa / Valéria Vinha / Peter May
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