Embora não seja santo de minha devoção, o falecido general Golbery do Couto e Silva dizia que o Brasil era um país que vivia entre ciclos de sístoles e diástoles, ou seja, aberturas e fechamentos, democracia e ditadura. Hoje, estamos em plena diástole. Um dos elementos mais característicos da atual diástole é a chamada autodefinição étnica. O tema que, anteriormente, estava restrito aos foros especializados de antropologia, hoje é um must em qualquer reunião social ou página econômica dos jornais diários.
E a Constituição Brasileira é a responsável por ter trazido o assunto para a ordem do dia. Explico-me. O artigo 231 de nossa Lei Fundamental que trata dos índios não define quem deve ser considerado índio, no que faz muito bem, deve ser consignado. As definições raciais oficiais já geraram muitas lágrimas para que persistamos no erro. Eu mesmo sou índio. Há alguns anos atrás tive a satisfação de defender a etnia Xerente em um processo judicial e os índios, agradecidos, passaram a me considerar como um deles, o que para mim é motivo de grande orgulho.
Um outro elemento constitucional que traz à baila a questão da autodefinição é o artigo 68 do ato das disposições constitucionais transitórias que assegura a terra para os remanescentes de quilombos. O assunto já foi aqui tratado em relação a um quilombo que fora reconhecido na aprazível Lagoa Rodrigo de Freitas na cidade do Rio de Janeiro. Alguém me segredou que estava finalizando uma reivindicação de terras no Arpoador, recanto não menos aprazível de nossa cidade. Contudo, o tema do artigo é a autodefinição e não a localização, por mais privilegiada que seja, das diferentes etnias que formam o povo brasileiro.
A autodefinição é um critério que foi incorporado ao direito brasileiro pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, que “promulga a Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais“. Portanto, a simples leitura da ementa do decreto é suficiente para nos indicar que a norma é específica e tem como destinatários os “povos indígenas e tribais”. Porém, povos indígenas e tribais não é um conceito suficientemente claro para que se possa utilizá-lo no mundo legal que, como toda área do conhecimento humano, precisa trabalhar com algumas bases estáveis para que seja operacional, mesmo que se deva reconhecer a relevância dos chamados conceitos jurídicos indeterminados que são estabelecidos em uma base casuísitica. Todavia, é importante relembrar que Direito que não se faça aplicável e operacional é mera declaração de intenções, especialmente quando se trata de norma de direito internacional como é o caso das Convenções.
Ciente da necessidade de definir o campo de aplicabilidade da Convenção, as partes signatárias, inclusive o Brasil, estabeleceram que: “Artigo 1o 1. A presente convenção aplica-se: a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial; b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas. 2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção”.
O número 2 acima é o que tem sido apontado como a base da autodefinição, pois segundo leitura à vol d’oiseau (a vôo de pássaro, em tradução livre), bastaria que alguém se considerasse indígena para que o reconhecimento viesse automaticamente. Ora, se assim fosse não haveria a necessidade do número 1 do artigo 1º. O decreto estabeleceu algumas condições objetivas – e não são “raciais” – que devem estar presentes, no caso concreto, e que serão complementadas pela subjetividade da comunidade. Fosse o critério meramente subjetivo qualquer um que se autodeclarasse índio teria direito a um torrão. Sonho legítimo de qualquer um, mas legalmente impossível, pelo menos no atual quadro jurídico. Do âmbito específico da legislação indigenista, o conceito de autodefinição migrou para o também explosivo tema dos quilombos e quilombolas, conforme se pode ver do artigo 2º do decreto nº 4.887/03 :
”Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. `PAR` 1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade. `PAR` 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural. `PAR` 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental.”
Importante observar que o decreto “regulamentou” a própria Constituição, o que me parece além dos já inúmeros poderes e prerrogativas desfrutados pelo Chefe do Executivo federal, e, neste particular, padece de grave vício jurídico que deverá ser confirmado ou não pelo Supremo Tribunal Federal após julgar Ação Direta de Inconstitucionalidade que por lá tramita desde 2003.
Admitindo-se a hipótese de que o decreto acima mencionado seja invalidado pela nossa Corte Constitucional, seguramente teremos uma situação extremamente grave e que terá sido gerada, não pela decisão judicial, mas por uma tentativa apressada do Executivo de resolver uma questão que depende de lei, pela fácil via da “regulamentação”, como costuma ocorrer em casos assemelhados. Milhares de pessoas depositaram suas esperanças no reconhecimento de remanescentes de quilombos que, apregoados pelo governo como legais não tiveram validação perante o Poder Judiciário. Qualquer decisão que venha a ser tomada pelo STF terá uma repercussão muito grande na vida de muitos brasileiros e no reconhecimento de seus direitos fundamentais.
Ao Executivo restou a posição mais fácil, pois se a sua estratégia quilombola for derrotada nos tribunais, dirá que o Judiciário é conservador e racista e que só favorece os poderosos. Há, portanto, um sutil constrangimento à Toga. Caso ela seja vitoriosa, diminui-se o espaço da matéria reservada à lei e a sociedade toda perde, avançando o arbítrio. De qualquer forma, perseverou-se na tradição brasileira de manter o povo “bestializado” e à margem.
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