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Estaria revogado o artigo 2º do Código Florestal?

Ao defender que reservas biológicas e estações ecológicas deixaram de existir no Código Florestal, Luis Carlos Silva de Moraes atenta para falta de critério e sistematização da legislação ambiental.

10 de agosto de 2009 · 15 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Enfim, chegou a hora da encomendação e da partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o
desespero daquele lance consternou a todos. Muitos homens choravam também, as mulheres todas.
Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la
dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão
apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas.

(Machado de Assis)

Em seu interessante Código Florestal Comentado, Luis Carlos Silva de Moraes  sustenta com impressionante clareza que o artigo 2° do Código Florestal está revogado, persistindo apenas as APPs estabelecidas pelos artigos 3° e 4° da Lei n° 4.771/65. Para não correr o risco de distorcer as palavras do ilustre autor, permito-me a reprodução, como se segue:

“Conclusão: o art. 18 da Lei n° 6.938/81 retiro o objeto do artigo 2° do Código Florestal do campo de coerção. Desde julho do ano 2000, as áreas abrangidas pelas Reservas/Estações Ecológicas deixaram de existir e com isso qualquer limitação/restrição sobre o esse território. Da mesma forma que o art. 18 da Lei n° 6.938/81 vinculou um novo regime jurídico a um território, revogando o anterior (art. 2° do Código Florestal), o art. 60 da Lei n° 9.985/00 revogou esse ônus e, como a Lei n° 9.985/00 trata toda a matéria (limitação/restrição de espaço territorial em benefício do meio ambiente), acabou por revogar as demais normas que tratavam sobre o mesmo assunto: a Lei n° 6.902/81, todos antigos embriões do objeto da Lei n° 9.985/00. Por isto está clara a revogação do art. 2° da Lei n° 4.771/65 e do art. 18 da Lei n° 6.938/81, persistindo como regime de APP apenas as áreas que atualmente assim se classificam em razão dos arts. 3° e 4° do Código Florestal.”    

De fato, como foi visto acima, o artigo 18 da lei n° 6.938/81 transformou as áreas tratadas pelo artigo 2° do Código Florestal em reservas ou estações ecológicas. Tal transformação, contudo, somente poderia gerar efeitos para as terras públicas federais que se encontrassem nas condições previstas pelo artigo 2° do Código. Não poderia dispor sobre bens públicos dos estados e dos municípios, ante a evidente falta de competência; igualmente não poderia dispor sobre terras provadas, pois o regime de restrições estabelecido pela Lei n° 6.902, artigo 1° , é incompatível com o domínio privado. É importante observar, contudo, que a “transformação” foi uma mera “barretada”, pois o artigo 2° , na prática, esvaziava o conteúdo do artigo 1°, haja vista que determinava que a “criação” das estações ecológicas dependia de “ato” o qual deveria definir-lhe dimensões, etc. Assim, uma ou outra estação ecológica foi criada, restando o artigo 18 da Lei n° 6.938/81 inteiramente ineficaz. Por sua vez, a revogação do artigo 18 da Lei n° 6.938/81 pelo artigo 60 da chamada Lei do SNUC foi mero reconhecimento legislativo de norma ineficaz e, ipso iure, já retirada do ordenamento jurídico.

A criação de unidades de conservação é ato executivo, de administração e, portanto, incluído dentre as competências exclusivas da Administração (Poder Executivo). Por esse motivo, o artigo 18 supra e retro mencionado – hoje revogado – há de ser compreendido como inconstitucional em relação à “Constituição de 1969”, sob a qual foi editado. Há corrente doutrinária que entende possível a criação de unidades de conservação pela via legislativa, no regime constitucional de 88: “A Lei n° 9.985/2000 não exigiu que as unidades de conservação fossem criadas por lei. O art. 22 estatui que “as unidades de conservação são criadas por ato do Poder Público”. Nada impede, contudo, que a lei seja o instrumento utilizado para a sua criação, observando-se que iniciativa da lei que ensejará a criação de “cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica” federal é do Presidente da República (art. 61§ 1°, II, a, da Constituição Federal)” . Na verdade, na matéria, como em tantas outras de cunho ambiental, “a confusão era geral”. Milaré  aponta que as unidades de conservação “têm sido criadas ora por lei, ora por decreto”. Há, contudo, que se observar que no caso de criação de unidades de conservação por lei, não se cuida propriamente de lei, em seu sentido de generalidade e abstração, mas de “lei de efeitos concretos”, ou em outras palavras: ato administrativo material, como tem sido reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal.
  
Segundo magistério de Meirelles : “Por leis e decretos de efeitos concretos entendem-se aqueles que trazem em si mesmos o resultado específico pretendido, tais como as leis que aprovam planos de urbanização, as que fixam limites territoriais, as que criam municípios ou desmembram distritos, as que concedem isenções fiscais, as que proíbem atividades ou condutas individuais; os decretos que desapropriam bens, os que fixam tarifas, os que fazem nomeações e outros dessa espécie. Tais leis ou decretos nada têm de normativos; são atos de efeitos concretos, revestindo a forma imprópria da lei ou decreto por exigências administrativas. Não contém mandamentos genéricos, nem apresentam qualquer regra abstrata de conduta; atuam concreta e imediatamente como qualquer ato administrativo de efeitos individuais e específicos(…)” Continua HELY LOPES MEIRELLES : “Não se discute que os atos do Poder Público sem caráter de generalidade não se prestam ao controle abstrato de normas, porquanto a própria Constituição elegeu como objeto desse processo os atos tipicamente normativos, entendidos como aqueles dotados de um mínimo de generalidade e abstração.”

Neste contexto, é imprescindível ressaltar o brilhante entendimento do Eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, proferido no julgamento da ADIN nº 842, cujo seguinte trecho merece destaque: “Sendo assim, os atos legislativos que ostentem a atípica condição jurídica de instrumentos veiculadores de resoluções materialmente administrativas, não se expõem – não obstante impugnáveis por outros meios processuais institucionalizados – ao controle normativo abstrato, cuja atuação reclama, até mesmo em função de sua especificidade e peculiaridade, objetos jurídicos próprios. Com isso, em face do que dispõe o art. 102, I, a da CF, acham-se pré-excluídos, para efeitos de jurisdição constitucional de controle in abstracto do Supremo Tribunal Federal, as leis e atos estatais desprovidos de normatividade. Objeto de controle normativo abstrato, perante a Suprema Corte, são, em nosso sistema de direito positivo, exclusivamente, os atos normativos federais, distritais ou estaduais. Refogem a essa jurisdição excepcional de controle, os atos materialmente administrativos, ainda que incorporados ao texto de lei formal.”

O Supremo Tribunal Federal tem orientação firme no sentido de que as leis de efeitos concretos não se sujeitam ao controle de constitucionalidade, em abstrato: “CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI COM EFEITO CONCRETO. LEI DE DIRETRIZES ORÇAMENTÁRIAS: Lei 10.266, de 2001. I. – Leis com efeitos concretos, assim atos administrativos em sentido material: não se admite o seu controle em abstrato, ou no controle concentrado de constitucionalidade. II. – Lei de diretrizes orçamentárias, que tem objeto determinado e destinatários certos, assim sem generalidade abstrata, é lei de efeitos concretos, que não está sujeita à fiscalização jurisdicional no controle concentrado. III. – Precedentes do Supremo Tribunal Federal. IV. – Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida.” (Ministro Carlos Velloso)

Milita, ainda, em desfavor da concepção de Moraes o fato de que as florestas e demais formas de vegetação  tratadas pelo artigo 2° do Código Florestal foram  consideradas de preservação permanente em razão de um contexto geográfico e não em razão de peculiaridades ambientais relevantes, como é o caso das Estações  Ecológicas contempladas pelo artigo 1º da Lei nº 6.902/81 que são  “áreas representativas de ecossistemas brasileiros” que nem sempre correspondem às características do artigo 2º do Código Florestal.

A denúncia de Moraes é procedente na medida em que chama atenção para um problema gravíssimo que é a mais absoluta falta de critério e sistematização da legislação ambiental, em especial da florestal que é uma colcha de retalhos, contraditória, confusa e pessimamente articulada.

 
1-Luís Carlos Silva de Moraes, Código Florestal Comentado, Sâo Paulo, Atlas, 4ª edição, 2009, pg. 38
2-Art . 1º – Estações Ecológicas são áreas representativas de ecossistemas brasileiros, destinadas à realização de pesquisas básicas e aplicadas de Ecologia, à proteção do ambiente natural e ao desenvolvimento da educação conservacionista.  § 1º – 90% (noventa por cento) ou mais da área de cada Estação Ecológica será destinada, em caráter permanente, e definida em ato do Poder Executivo, à preservação integral da biota. § 2º – Na área restante, desde que haja um plano de zoneamento aprovado, segundo se dispuser em regulamento, poderá ser autorizada a realização de pesquisas ecológicas que venham a acarretar modificações no ambiente natural. § 3º – As pesquisas científicas e outras atividades realizadas nas Estações Ecológicas levarão sempre em conta a necessidade de não colocar em perigo a sobrevivência das populações das espécies ali existentes.
3- Art . 2º – As Estações Ecológicas serão criadas pela União, Estados e Municípios, em terras de seus domínios, definidos, no ato de criação,[negrito: PBA] seus limites geográficos e o órgão responsável pela sua administração.
4- Paulo Affonso Leme Machado, Direito Ambiental Brasileiro, São Paulo, Malheiros, 17ª edição, 2009, pg. 823
5- Édis Milaré,Direito do Ambiente, São Paulo, Revista dos Tribunais, 6ª edição, 2009, pg. 719
6-Hely Lopes Meirelles. Mandado de Segurança .São Paulo, Malheiros, 2006. p.41

7-Hely Lopes Meirelles, . Mandado de Segurança .São Paulo, Malheiros, 2006. p.373
8- STF – ADI-MC 2484, Tribunal Pleno,  DJU: 14.11.2003
 

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