O aniversário do parque não estava no programa. Entrou no roteiro por conta dos atrasos que se foram acumulando na estrada, do Rio de Janeiro a Foz do Iguaçu – desde uma ponte corroída por temporais que interrompeu a rodovia Régis Bittencourt a 150 quilômetros de Curitiba até o engarrafamento inesperado provocado por um acidente grave, quase no portão de acesso às cataratas, cerca de mil quilômetros mais tarde.
Tudo isso também quer dizer que, apesar da chuva, o movimento aqui anda intenso neste verão. E ele se torna particularmente estrannho na BR-469, dentro do Parque Nacional do Iguaçu. Nas cataratas, mau tempo é sinônimo de água farta para os turistas, que vêm ver a Garganta do Diabo e querem todas as cachoeiras a que o ingresso lhes dá direito. Com isso o amanhecer na vizinhança da estrada ganhou nesta temporada de férias uma espécie de trilha sonora composta em movimentos, como uma peça sinfônica. Ela abre triunfalmente, com o dia ainda escuro, pelas vozes de boa parte das 330 espécies de aves que os ornitólogos andaram contando na região.
Com o dia claro, lá pelas sete e meia da manhã, os sons da mata se misturam ao ronco constante de motores e ao chiado de pneus rodando no asfalto meio áspero da BR-469. Iguaçu é, descontado o da Tijuca, que a rigor é um bairro meio rural do Rio de Janeiro, o parque mais visitado do país. E a BR-469 a passagem obrigatória desse tráfego, em seu interior. E isso tem preço, na forma de pelo menos 300 táxis, vans, carros oficiais, ônibus e caminhões que mantém o lugar, ao mesmo tempo, visitado, abastecido e sob o olho das autoridades. Isso sem contar os ônibus de dois andares do próprio parque, que passam de 15 em 15 minutos.
Resultado: morrem em média 20 animais por mês, atropelados no que é oficialmente uma unidade devotada à conservação. Isso só vira notícia raramente. Por exemplo, no ano passado, quando às estatísticas de baixas na fauna local juntou-se uma raridade, em forma de onça pintada. Tratava-se ainda por cima de um verdadeiro troféu vivo, um macho de cinco anos, em plena forma, verdadeira relíquia da inumerável população de “tigres” que povoa até hoje a memória dos colonos catarinentes e gaúchos, que chegaram em caravanas à fronteira selvagem do oeste paranaense há cerca de meio século, para derrubar a floresta em velocidade espantosa. Mais de 60% da cobertura florestal do estado desapareceram naquela fase épica.
A tal onça morreu de hemorragia interna generalizada, ao saltar do barranco escuro para a luz incandescente dos faróis de um veículo que devia ser pesado, talvez um ônibus madrugador, levando ao Hotel das Cataratas hóspedes ou funcionários. Não é fácil, de longe, entender como uma coisa dessas acontece, enquanto não chega a nossa vez de estar ao volante diante de pedestres que têm suas próprias noções sobre o código de trânsito num parque nacional. Sem dúvida, as noções certas.
Em outras palavras, eles têm o hábito de surgir sem aviso, materializando-se diante dos carros como se viessem do nada. Foi o que conteceu no sábado passado, no anoitecer de um dia duplamente agitado, pelas férias e pela festa de aniversário do Iguaçu. Mas era tarde. A BR-469 estava a essa altura quase deserta de gente. Portanto, engarrafada de bichos.
Nada a ver, no caso, com os quatis diurnos que encantam visitantes, esmolando comida de qualquer tipo na trilha das cachoeiras, embora sejam um sinal inconfundível de que alguma coisa anda errada na população do parque, ou eles não seriam tantos, nem tão atrevidos. O que trafegava naquele momento pela BR-469 era a bicharada furtiva, a que passa o dia esperando o embarque dos últimos turistas para ir à luta. Havia cotias, lebres e cuícas quase sem conta na beira do asfalto. E uma vara de caititus fuçando o acostamento. Além de sapos cruzando o asfalto. Pareciam pequenas pedras soltas no asfalto irregular, até que saltavam de repente na mesma direção, rumo ao acasalamento – o que entre eles geralmente implica a organização de noitadas ruidosas e promíscuas.
O biólogo americano Bernd Heinrich, autor de um belo livro científico sobre os efeitos do verão ao redor de sua casa no Maine, debruçou-se longamente sobre a trepidante vida amorosa desses machos que hibernam no inverno, aproveitam o papo vazio como caixa de percussão para coaxar no máximo volume e arriscam tudo na aposta de que saltarão no dorso da primeira fêma disponível antes que outro sapo o faça ou que, às centenas, um pneu de carro lhes passe por cima, na rota do banhado.
Depois de ler “Summer World”, dirigir numa estrada cheia de sapos tornou-se uma responsabilidade tão grande quanto controlar a travessia de alunos na frente de uma escola. As placas da rodovia marcam em 60 quilômetros por hora o limite de velocidade. Mas, com tanta coisa a ver e sobretudo a evitar, passar de 30 quilômetros por hora me parecia, nas circunstâncias, impraticável.
Ainda bem, porque lá pelas tantas, sem mais nem menos, brotou na beira da estrada um veado mateiro. E estava decidido a ir para o outro lado. À vista do carro que freava, ele não fugiu. Parou, de orelhas estendidas para a frente, a poucos metros de distância, como se conferisse a perícia da manobra. E só seguiu viagem depois de verificar que estava tudo nos conformes.
Mais do que um belo espetáculo, aquela Mazama americana deu uma aula inaugural que deveria fazer parte do programa oficial de aniversário do Iguaçu. Só os 71 anos de um parque nacional podem dar tamanha confiança a uma criatura de sua espécie. Como os outros bichos do acostamente, ele parecia saber que, esgotado o expediente dos intrusos na unidade de conservação, era novamente o dono da casa… …e, por falar nisso, essa história fica por aqui. O sol saiu depois de dois dias e as borboletas estão indóceis lá fora, chamando a máquina fotográfica. Amanhã elas provavelmente estarão nesta página.
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