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Decreto macabro

O governo federal deve suspender o vergonhoso decreto 7154 de 9 de abril que autoriza planejar hidroelétricas em unidades de conservação. 

19 de abril de 2010 · 15 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

 O Decreto federal 7.154 de 9 de abril de 2010 autoriza a se fazer estudos de aproveitamento de potenciais de energia hidráulica e sistemas de transmissão e distribuição de energia elétrica no interior de qualquer unidade de conservação federal e já autoriza a fazer obras de transmissão e distribuição dentro das de desenvolvimento sustentável. São excetuadas as APAS e as RPPNs. Trata-se de um dispositivo perigoso e malévolo, nem tanto pelo que diz, mas muito mais pelo que não diz. Além do mais é claramente anticonstitucional. E daí? Parece que se importam pouco com isso.

“No momento em que a humanidade toda já sabe da necessidade de ser cuidadosa, a máxima autoridade do país com o aval do próprio Ministério do Meio Ambiente e do seu Instituto responsável pela defesa do patrimônio natural, abre tudo! É quase inacreditável”

Para início de conversa é óbvio que os estudos de viabilidade que serão autorizados, com base no decreto, só serão feitos porque se quer construir hidroelétricas em unidades de conservação de todas as categorias, quer sejam de preservação permanente ou de desenvolvimento sustentável. Ou querem nos fazer acreditar que vão usar milhões de reais apenas para “saber”. Saber o que? Embora mal gastar dinheiro público seja coisa cada vez mais corriqueira, neste caso não parece provável. Ou seja, parece que, ignorando a Constituição, o governo pretende destruir as unidades de conservação, inclusive as de proteção integral, tão dificilmente estabelecidas para salvar algo da preciosa biodiversidade nacional. E para isso mal dissimula suas intenções no malfadado decreto citado.

Embora se possa dizer que o Brasil já assistiu um precedente em Sete Quedas, há que se esclarecer, que não obstante a infelicidade de o país ter inundado um Parque Nacional, primeiro ele foi extinto legalmente. Foi um só. Deus como soa mal este “um só”, pois o precedente foi aberto. Quatro décadas depois da extinção do Parque Nacional de Sete Quedas para dar lugar a uma hidroelétrica (Itaipu), vem este decreto, que nem se preocupou em respeitar a Constituição. O decreto, também, me faz lembrar o fato histórico ocorrido no Parque Nacional da Tijuca, em plena cidade do Rio de Janeiro, cujos cabos das linhas e torres de transmissão, que o cortam, foram colocados na década de sessenta por helicópteros para se evitar o desmatamento comum sob as mesmas, graças ao firme posicionamento do diretor do Parque Nacional à época, Alceo Magnanini. Inúmeras batalhas para se evitar hidroelétricas e linhas de transmissão em parques nacionais foram vencidas ao longo dos anos. Foram vencidas por funcionários dignos e comprometidas com sua responsabilidade maior, qual seja a defesa das unidades de conservação. Mas, agora, precisamente no momento em que a humanidade toda já sabe da necessidade de ser cuidadosa, a máxima autoridade do país com o aval do próprio Ministério do Meio Ambiente e do seu Instituto responsável pela defesa do patrimônio natural, abre tudo! É quase inacreditável.

O decreto é ilegal. E daí? Para que o Decreto 7154 de 9 de abril passe a ser legal, basta transformá-lo de decreto em Lei. O próprio Ministério do Meio Ambiente vem anunciando que outros decretos serão brevemente assinados visando agilizar o licenciamento ambiental. Passar uma lei no atual Congresso Nacional para destruir ambientes protegidos, como as unidades de conservação, parece tarefa fácil, quando se assiste ao ataque feroz ao Código Florestal em vigor e às centenas de tentativas, algumas já bem sucedidas, de abri-lo mais e mais para dar lugar às atividades produtivas, obras de infra-estrutura, cidades, entre outras ameaças. Podem continuar caindo e matando gente os morros e encostas ilegalmente ocupados; bem como as inundações muitas vezes aceleradas pelo também descaso no cumprimento do Código Florestal, que os políticos de plantão vão continuar a detoná-lo, não obstante o fato de que homens de muita visão tivessem tentado evitar a morte anunciada de centenas ou milhares de pessoas na década de sessenta, quando o prepararam.

“Qualquer país que preze o meio ambiente natural contornaria as unidades de conservação ou faria as linhas subterrâneas. Não aqui. Aqui pode tudo para destruir o ambiente e aparentar estar resolvendo outros problemas”

Como se os estudos fossem pouco, o decreto já autoriza “a instalação dos referidos sistemas em unidades de conservação federais de uso sustentável”. Não autorizaram nas de preservação permanente só porque a inconstitucionalidade ficaria ainda mais evidente. O escândalo seria maior. Porque então autorizar os estudos nas unidades de conservação de preservação permanente se a instalação não foi claramente permitida no decreto? Aqui há que se ressaltar que nas unidades de conservação estaduais nada foi autorizado. Queira Deus que os estados não o permitam em suas áreas protegidas.

Para culminar com as polêmicas autorizações abertas pelo Decreto 7154 o seu artigo 5º reza “as interferências …. não poderão descaracterizar ou por em risco o conjunto dos atributos da unidade de conservação federal e deverão ser reversíveis e mitigáveis…” Como pode, senhores donos da verdade? Como isso é possível? Parece que esse pessoal nunca voou por cima de uma linha de transmissão e suas torres. Além do desmatamento, cada torre tem seu acesso próprio. Tem sua estradinha. Linhas de transmissão são feridas abertas dentro de unidades de conservação pelas quais transitará a ilegalidade.

Qualquer país que preze o meio ambiente natural contornaria as unidades de conservação ou faria as linhas subterrâneas. Não aqui. Aqui pode tudo para destruir o ambiente e aparentar estar resolvendo outros problemas, que aqueles que nos governam acham mais importantes. Pode-se até ter hidroelétricas em parques nacionais, que são o maior bem natural de um país, ou pode-se até extingui-los para gerar energia que poderia e deveria ser gerada fora das unidades de conservação.

Alguém ainda duvida das conclusões desta nota? É só esperar para ver. Nós vamos esperar sentados? Resta à sociedade pensante tentar esclarecer o que isso pode significar de sequelas para o futuro da nossa biodiversidade e dos recursos hídricos já tão ameaçados. O governo federal deve retirar de imediato este decreto vergonhoso e, se a sua intenção é como parece, destruir o pouco de verde que o Brasil ainda tem, melhor é que se prepare para assumir sua responsabilidade.

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