Embriagados com a exuberante natureza do Brasil, os portugueses não demoraram em descer o machado nos grandes arvoredos. Caíram os paus-brasil, subiram os canaviais, abriram-se as minas. A folia no eldorado parecia não ter fim. Afinal, como adiantara Pero Vaz de Caminha, aquilo tudo se mostrava “infindo”. Num período em que não era difícil as caravelas lusas e espanholas toparem com novas terras, já circulavam pela Europa inventários sobre a utilidade de minerais, vegetais e animais encontrados mundo afora. Mas por estes alegres trópicos, ninguém parecia ligar para isso, e a exploração predatória e irracional seguia seu ritmo. O primeiro estalo só veio trezentos anos depois de Cabral, sob o nome de Domenico Agostino Vandelli.
Italiano de Pádua, o médico e naturalista Vandelli veio ao mundo em 1735, junto com o “Systema Naturae” do sueco Carl Linnaeus (Lineu), que estabeleceu as bases para a classificação das espécies. Cresceu influenciado pelos trabalhos do sueco e pelos ventos iluministas que sopravam na Europa. E apesar de não receber muita bola dos historiadores, foi por seu intermédio que o Brasil começou a se redescobrir. Em 1783, quando o naturalista já estava com o nome feito em Portugal, onde se estabelecera desde 1764, partiram de Lisboa as primeiras expedições científicas para estudar a natureza brasileira.
As comitivas eram compostas por alunos que Vandelli formou na Universidade de Coimbra, depois que a instituição já estava de cara nova, com a reforma acadêmica de 1772. Cariocas, baianos, mineiros que atravessaram o Atlântico para receberem o diploma na metrópole rumavam novamente para o Brasil com instruções do mestre debaixo do braço. O objetivo era revirar regiões da colônia pouco conhecidas, catalogando os recursos naturais e registrando suas potencialidades sócio-econômicas.
Orientados pelo italiano, pela primeira vez a chegada das caravelas não tinha fundo predatório, mas científico. Acompanhados de desenhistas, discípulos de Vandelli como o baiano Alexandre Rodrigues Ferreira – que ficou conhecido pelos relatos que fez sobre a Amazônia – chegaram para contradizer a mentalidade de que as matas eram “embaraços” que só dificultavam o avanço da agricultura. Anotando tudo o que viam pela frente, os expedicionários começavam a difundir a idéia de que as práticas econômicas aplicadas aqui eram rudimentares e ignorantes. E que se continuasse assim, o país não ia muito longe.
História remontada
Dona da editora carioca Dantes, Anna Paula Martins resolveu resgatar a passagem de Vandelli pela história brasileira. Em 1999, quando a editora lançava uma nova edição dos relatos do arcabuzeiro alemão Hans Staden sobre o Brasil, um texto que seria de autoria do naturalista de Pádua caiu no colo da pesquisadora. Até então, ela nunca ouvira falar no sujeito, mas logo notou que se tratava de uma figura importante que por algum motivo acabara esquecida. Resolveu, então, correr atrás de informações que pudessem completar a história.
O processo foi longo. As documentações da época estavam espalhadas por Brasil, Portugal e até França, devido à invasão napoleônica em solo luso. Anna Paula aliou-se à historiadora Isadora Travassos e as duas começaram a pinçar materiais que aos poucos ganharam corpo. Nove anos depois, a pesquisa resultou na coleção Memórias do Gabinete de Curiosidades de Domenico Vandelli, uma caixa com oito livros que contextualizam a participação do naturalista na redescoberta do Brasil. O pacote será lançado no início de julho com uma exposição, em meio às comemorações pelos 200 anos do Jardim Botânico carioca, e inclui relatos que mostram como o médico italiano foi decisivo para a exploração científica no país.
“Vimos no Vandelli um elo de ligação entre a visão de natureza brasileira e o sistema de Lineu, o Iluminismo, a ciência. Vandelli foi o divulgador do sistema de Lineu em Portugal”, explica Anna Paula, acrescentando que as freqüentes correspondências entre os dois também serão publicadas com o Gabinete de Curiosidades. “O projeto foi concebido para apresentar esse universo dos discípulos de Vandelli, que vieram nas chamadas viagens filosóficas para mapear regiões do Brasil. Não era a mesma forma de entrada das bandeiras, que chegavam para matar os índios, botá-los para trabalhar. Era uma outra abordagem de penetração no território, uma forma de estudo. Eles eram muito interessados em saber como os nativos usavam as plantas”.
Os naturalistas-correspondentes enviavam para o italiano remessas do que encontravam por aqui, entre amostras vivas e desenhos. Foi assim que Vandelli conheceu o Brasil, já que nunca cruzou o Atlântico. Afinal, desde que foi convidado a deixar Pádua e ir lecionar no Colégio dos Nobres na capital portuguesa, em 1764, ele não parou de trabalhar. Com o iluminismo à flor da pele, fez o que pôde para difundir as novas idéias por Portugal, que insistia em ficar no atraso perante os países vizinhos. Foi ele quem fundou a Academia de Ciências de Lisboa e o Jardim Botânico da Ajuda, contribuiu na reforma que botou de cabeça para baixo a ultrapassada Universidade de Coimbra, criou o Museu de História Natural na mesma cidade e manteve altos cargos em cada uma das instituições.
Depois de tudo isso, não foi difícil convencer os nobres influentes a botar no navio alguns dos alunos de Coimbra para conhecer o Brasil com a lupa da ciência. Ganhou prestígio junto a Rodrigo de Sousa Coutinho, que entre 1796 e 1801 era ministro da Marinha e do Ultramar, e virou conselheiro de dom João VI em 1779. A história dos dois, aliás, começou bem mais cedo, quando o príncipe-regente ainda era uma criança. “O primeiro jardim botânico português foi feito por Vandelli para dom João VI”, conta Anna Paula. A realeza cresceu em meio às plantas e idéias do italiano, e como se vê, tomou gosto pela coisa: em 1808, quando desembarcou com a Corte no Rio de Janeiro, logo arranjou um canto para aclimatar mudas e sementes que levava na bagagem, dando origem ao atual Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
Precursor
Apesar de geralmente não receber o crédito, Vandelli inaugurou uma nova mentalidade em Portugal, e arrastou uma turma que não se contentava com a irracionalidade com que a colônia brasileira era gerida. Inúmeros documentos do fim do século 18 e início do 19 revelam a devastação ambiental que o território vinha sofrendo, fruto direto de uma exploração sem critérios. Como para a elite era moleza conseguir novos hectares, não havia a preocupação com a preservação dos solos e matas, e os senhores se contentavam em pular de terra em terra atrás das riquezas que ainda podiam ser arrancadas.
Pelos inventários feitos in loco e os estudos sobre as potencialidades da natureza daqui, os alunos de Coimbra passaram a criticar abertamente essa destruição, propondo maneiras mais inteligentes de se aproveitar os recursos. “Vandelli é um dos primeiros a levantar essa bola no Brasil. Desde as instruções dele aos seus discípulos, que também vamos publicar com o projeto, ele fala: vamos respeitar, vamos cuidar”, diz Anna Paula. “Mas a visão que ele tem da natureza é, de fato, preocupada com a economia. Você não pode tirar mais que plantar senão vai acabar aquele recurso, então ele já pensa numa legislação de corte de madeira”, completa.
Além do famoso “Diário da Viagem Filosófica” produzido por Alexandre Ferreira sobre a Amazônia, muitos outros autores contribuíram para o conhecimento de regiões brasileiras na época. Mas ao chegar em Portugal, a documentação das espécies e suas utilidades muitas vezes acabavam nas gavetas da Corte, por questões de segurança.
“Havia uma tentativa de preservação das informações sobre o Brasil, diante da riqueza que se tinha aqui. Ninguém fica falando para todo mundo o tesouro que tem”, observa a chefe da Dantes, que teve de se desdobrar para encontrar os antigos registros na Torre do Tombo. “Algumas espécies catalogadas iam para o arquivo antes de serem divulgadas, então nunca ganharam domínio público”.
Talvez por isso, trabalhos como o do paraibano Manoel Arruda Câmara, que relatou a natureza do sertão, e do português Francisco Antônio Sampaio, que documentou animais e vegetais da Bahia, entre outros, tenham caído no esquecimento. As anotações e desenhos reunidos por eles e outros correspondentes também vão ganhar páginas no projeto da editora.
“O contexto das viagens filosóficas nunca tinha sido apresentado. E existe uma tendência brasileira ao olhar do estrangeiro, muito porque esses espólios dos franceses, ingleses foram bem organizados nos museus para onde se direcionavam. Existe, nesses países, uma preocupação com a memória. A questão aqui é a falta de preocupação com a memória do Brasil. Fica mais fácil usar a memória externa. Até sobre nós mesmos”, analisa Anna Paula.
Legado empoeirado
Ao organizar as viagens filosóficas, Vandelli não pretendia que os estudos enviados por seus alunos ficassem empoeirados nos arquivos Reais. Quando morreu, em 1816, a proibição de expedições estrangeiras no Brasil caiu, e sua obra foi atropelada pelas impressões de naturalistas que vinham de outros países. Foi o caso do francês Auguste de Saint-Hilaire, que veio com o pintor Debret em 1816; o alemão Johann von Spix e o austríaco Karl von Martius em 1817; e o alemão Heinrich von Langsdorf, em 1824, que publicavam seus trabalhos sem impedimentos e ganhavam ares de novidade.
De qualquer maneira, as pesquisas de Anna Paula e Isadora Travassos põem o italiano em seu devido lugar na história brasileira. Além da caixa que será lançada em julho, o projeto também guarda para agosto alguns lançamentos. O texto “Viagens Filosóficas ou Dissertação sobre Importantes Regras que o Filósofo Naturalista nas suas Peregrinações deve Principalmente Observar”, publicado em 1779 para orientar os correspondentes, será incluído na íntegra. Os escritos vão acompanhar um livro de arte com mais de 200 imagens enviadas pelos expedicionários sobre a natureza da colônia. Um livro para crianças também está na agenda, e a dupla ainda pretende jogar na internet uma penca de informações inéditas.
Coisa à beça para um nome que não costuma freqüentar livros de história. Mas que influenciou muito alguns protagonistas de nosso passado. Entre os alunos que Vandelli formou está José Bonifácio de Andrada, que no anseio pela Independência brasileira não deixou de lado os ensinamentos do mestre sobre o ambiente: “Destruir matos virgens, (…) e sem causa, como até agora se tem praticado no Brasil, é extravagância insofrível, crime horrendo e grande insulto feito à natureza”, criticava, ainda em 1821. “Esse tipo de visão menos predatória é Vandelli que traz. Mas a gente sabe que isso funciona em termos, não é? Senão, não estaríamos do jeito que a gente está hoje”, conclui Anna Paula.
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