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Madeira de lei

Ditinho Joana, um escultor de São Bento do Sapucaí, no interior de São Paulo, mostra que desconhecer a legislação ambiental não é desculpa para descumpri-la.

9 de setembro de 2004 · 20 anos atrás

De Benedito da Silva Santos, mais conhecido como Ditinho Joana, muita gente já ouviu falar pelo destaque que vêm ganhando suas esculturas. Joana parece apelido, mas é o sobrenome da família, que não herdou pela sugestão intrometida do oficial do cartório onde seu pai foi registrá-lo.

Como escultor, Mestre Ditinho já é figurinha relativamente fácil na mídia. Suas obras já foram retratadas em matérias de revistas especializadas em decoração e arquitetura. Expõe freqüentemente em São Paulo e, em 1997, exibiu suas esculturas no Palácio do Catete. No fim do ano passado, esteve no Programa do Jô, da Rede Globo.

Mas à parte da beleza e expressividade realmente notáveis de suas peças, Ditinho Joana tem muito mais a oferecer ao mundo, o que se descobre facilmente com dois dedos de prosa. Ele é um dos raros exemplos de pessoas que são ambientalistas pela mais pura vocação.

De origem humilde, Ditinho nasceu e cresceu na região de São Bento do Sapucaí, próxima a Campos do Jordão. Tem 59 anos, uma mulher, seis filhos e muita coisa a ensinar. Cursou apenas até a terceira série primária. Mas, se bem aproveitadas, suas lições podem ser uma verdadeira aula de conservacionismo.

A vida de escultor começou há cerca de 30 anos, quando trabalhava para um fazendeiro, “limpando” as margens de um rio. Ao arrancar “um pé de Sangue de Adágua”, árvore comum no local, deparou-se com uma raiz que lembrava um animal. Decidiu levá-la para casa. O tal bicho, segundo ele, tinha pescoço de girafa, cara de gato e patas que lembravam as de um cavalo ou as de um cão.

Sem conseguir definir o bicho que encontrara, resolveu criar suas próprias figuras. “Devo à natureza ser um artista. Aquela raiz foi a raiz do meu trabalho”, reconhece. Suas esculturas registram cenas do cotidiano de artesãos e de pessoas que trabalham e vivem na roça, além de algumas poucas figuras sacras.

Seu trabalho é todo feito com a madeira de árvores que encontra caídas, ou que pessoas da região trazem para a sua casa. Ele mesmo descreve sua técnica como reaproveitamento, através da qual dá nova vida ao que estava morto.

Esse, inclusive, foi o argumento definitivo que ele utilizou para comprar um jacarandá – madeira de sua predileção – que havia caído nas terras de um fazendeiro local. A árvore tinha grande valor sentimental, mas foi vendida depois que Ditinho explicou para o proprietário que aquela árvore que estava condenada à morte no seu quintal, renasceria, em diversas casas, na forma de esculturas.

A razão para não derrubar árvores é que “evita problemas com o IBAMA”, afirma Ditinho, em um primeiro momento. Mas a verdade é bem diferente e muito mais nobre. É algo pessoal. Sua veia ecológica vem de família e foi exercitada no sítio do avô materno. Lá o respeito pela natureza era mais do que opção, era obrigação.

Ditinho desde cedo aprendeu que é proibido destruir as colméias para apanhar o mel. Que se deve deixar aos ratos silvestres parte das espigas de milho consumidas. Que não se colhem os frutos do pé sem poupar alguns para os pássaros. Há 50 anos, seu avô, filho de escravos, que não sabia ler, ensinou-lhe a reciclar parte do lixo. Ele produzia adubo usando as folhas e galhos varridos no terreno.

Hoje, essa técnica ganhou tem nome – compostagem – e é anunciada como uma grande e nova idéia para o problema ambiental do lixo. E é. Ditinho já sabia disso desde menino. Muito cedo, foi acostumado a observar e respeitar a natureza. “Se formos contra a natureza, ela responderá”, ensina.

Após a morte de seu avô, comprou parte do sítio, só para preservá-la. Ali ainda se encontram muitas das árvores originalmente plantadas, que ele viu crescer durante a infância, e que só virarão esculturas se caírem sozinhas.

Além de se interessar pela natureza, Ditinho gosta muito de ler. O assunto não importa muito, o que faz com que seja uma pessoa mais bem informada do que parece. A curiosidade o acompanha desde o berço. É capaz de mencionar pesquisas recentes sobre o futuro problema da falta de água doce no mundo. E enxergar o que acontece ali perto: “Por aqui já se notam rios e minas onde a água vem diminuindo”. E emenda: “Esse problema é, inclusive, o tema da última Campanha da Fraternidade”.

A moral disso tudo? Um dos princípios de nosso ordenamento jurídico diz que ninguém pode alegar a própria ignorância a respeito da lei para justificar uma conduta ilícita. Não se pode cometer um crime e depois se livrar da punição, afirmando não saber que estava fazendo algo proibido.

A aplicação deste princípio é viável, em grande parte, porque uma pessoa comum é capaz de agir dentro da lei, na maior parte do tempo, simplesmente usando seu bom senso. Nós não roubamos simplesmente por sabermos que isso é errado, e não por conhecermos o artigo 157 do Código Penal.

No caso da legislação ambiental, no entanto, guiar-se pelo bom senso não é a norma. Grande parte dos pequenos proprietários de terra, por exemplo, desconhece o que seja a reserva legal, e acaba desmatando por completo seus terrenos. E muitos grandes proprietários simplesmente fingem desconhecê-la.

Ignorância, seja legal ou não, é relativa. Tem gente bem educada, com diplomas e títulos, que acha matar bicho um esporte. Ou pensa que propriedade limpa não pode ter árvores, para não sujar o gramado. E que as árvores por sua vez não passam de mobília em potencial. Elas têm muito o que aprender. E, para não esquentar muito a cabeça, basta procurar pelo Mestre Ditinho, em São Bento do Sapucaí, que dá aulas de graça. Com direito a bolinho e café.

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