Pensar o direito ambiental brasileiro em termos práticos, com os pés no chão, pode ser muito frustrante. Chato, até. Permitam-me, portanto, uma elucubração um tanto radical. Trata-se apenas de uma idéia que, como todas as outras de sua espécie, só serve para ser pensada, para ser deixada em banho-maria dentro do cérebro – afinal de contas, a idéia executada não é mais idéia, é ação.
Os crimes contra a humanidade e o meio ambiente
Em 2002 a humanidade passou a contar com o Tribunal Criminal Internacional de Haia – ICC, na sigla em inglês –, na Holanda, com competência para processar e julgar os crimes de genocídio, os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra. Instituído pelo Tratado de Roma, sua competência é bem específica e delimitada aos “crimes mais graves, que afetam a comunidade internacional no seu conjunto”, incluídos aí os acima mencionados. Considerando-se que genocídio é a prática de atos destinados a extinguir um determinado grupo étnico, religioso, racial ou nacional, e que não estamos declaradamente em guerra, seria possível incluir-se a postura de negligência ambiental das autoridades brasileiras entre os crimes contra a humanidade?
O próprio Tratado de Roma define tais crimes como sendo “qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque: (a) Homicídio; (b) Extermínio; (c) Escravidão; (d) Deportação ou transferência forçada de uma população; (e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional; (f) Tortura; (g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; (h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3o, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal; (i) Desaparecimento forçado de pessoas; (j) Crime de apartheid; (k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental”.
Como se nota, dois componentes parecem ser cruciais para se definir o que sejam crimes contra a humanidade: os responsáveis pela ação ou omissão devem, no ato do ataque, ter conhecimento dele. Ou seja, há que haver um ataque e este deve ser doloso, intencional, deliberado. Não se poderia, portanto, de cara, colocar a conduta ambiental omissa de certos governos entre os crimes de competência do ICC. Mas, pensando bem, isso é uma tremenda injustiça.
Os crimes cometidos contra o meio ambiente são os que possuem, no médio e longo prazo, o maior potencial ofensivo contra um grande grupo de pessoas. Suas conseqüências atravessam gerações e fronteiras. As queimadas, o desmatamento, a poluição do ar, do solo e das águas causam problemas não para um determinado grupo específico de pessoas, mas para a humanidade como um todo. O holocausto ambiental, deixado de lado o impacto causado pelas cenas de campos de concentração, é muito mais grave do que o promovido durante a Segunda Guerra Mundial ou nos Bálcãs. Atinge, muito mais do que a vida, os meios de sobrevivência em um raio imprevisível. Por que isso não os qualifica para o rol dos crimes contra a humanidade, é difícil de entender.
Diante disso, não seria má idéia a criação de um tribunal ou de um órgão supranacional com legitimidade e competência para fiscalizar e processar os crimes contra o meio ambiente mais graves, que destruam patrimônio da humanidade, nos moldes do ICC.
O papel ambiental da ONU
Outra questão que sempre me incomoda diz respeito às intervenções da ONU. A ONU exerce seu papel de polícia internacional para controlar praticamente tudo. Genocídio, doenças, guerra civil, fome, sede, armas nucleares químicas e biológicas, minas terrestres. A lista é grande. Até para garantir eleições ela se presta. Por que, então, a ONU não intervém para proteger recursos naturais de valor inestimável para a humanidade, cuja preservação poderia curar doenças e prevenir a fome e a sede e cuja destruição, com certeza, causará algumas dessas coisas, além de pobreza, fluxos migratórios descontrolados e até mesmo guerras? Por que não mandar os “capacetes azuis” para defender as florestas tropicais que nos restam ou para controlar as emissões abusivas e injustificáveis de poluentes? Quem dita as medidas de relevância e de interesse global aqui? A epidemia de Aids na África é uma lástima, algo realmente triste e lamentável. Mas será que ela afeta tanto a humanidade como um todo como o aquecimento global ou a destruição dos nossos últimos remanescentes de floresta?
É difícil pensar tais questões com isenção. As imagens de uma clareira aberta a ferro e fogo na Amazônia, ou de uma chaminé cuspindo diariamente toneladas de gases tóxicos na atmosfera, não têm como competir com uma criança magra, com a cara cheia de moscas e o sangue infectado com HIV. Essa última dói muito mais nos corações das pessoas. Mas é preciso entender que, embora eles não possam nos relatar isso, qualquer mamífero, ao morrer queimado em um incêndio florestal, sente tanta dor quanto uma pessoa. Quando um urso é preso em uma jaula e mutilado vivo, para que se possa extrair bile de sua vesícula diariamente, sem anestesia ou qualquer cuidado, sua dor é igual à minha e à sua. Seu sistema nervoso é praticamente o mesmo de um humano. Mas nesse caso, ninguém faz nada. É uma “questão cultural”, que deve ser “respeitada”. Quais são os pesos e as medidas do sofrimento? Que tipo de crueldade ou desgraça justifica, afinal, uma intervenção internacional?
Esses são pontos em que, provavelmente, apenas meia dúzia de pessoas concorda comigo. Se tanto. E é bem possível que, dentre essas, algumas estejam presas. Mas acho que são questões para as quais eu não encontro, dentro de mim, respostas. Nem do ponto de vista lógico, nem do ponto de vista jurídico. Menos ainda do ponto de vista ambiental. Talvez a resposta seja mesmo a que já me foi dada algumas vezes: o direito ambiental não existe para proteger o planeta ou os demais seres que o habitam, mas os homens que o criaram – o direito, não o planeta.
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