A liminar concedida, no último dia 8, na ação civil pública nº 2006.51.11.000219-2, para suspender o processo de licenciamento ambiental da usina nuclear Angra 3, ainda vai dar o que falar. Se, por um lado, a decisão mexe num antigo vespeiro ambiental e energético do país, por outro traz uma fundamentação jurídica que está longe de ser “preto no branco”.
A decisão
O juiz federal Raffaele Felice Pirro, da 1ª Vara Federal de Angra dos Reis, acolheu a tese do Ministério Público Federal — autor da ação — que defende que o licenciamento ambiental de Angra 3 viola o princípio da legalidade porque não há, até agora, lei que defina onde será localizada a futura usina, exigência feita pelo § 6º do art. 225 da Constituição Federal. Quanto a isso, não resta a menor dúvida. De fato, apesar de as obras da usina serem do início da década de 1980, e da Constituição Federal ser de 1988, até hoje ninguém teve a santa idéia de ligar os pontos e promulgar a tal lei que define onde ela será instalada — nada que surpreenda, já que prevenir problemas nunca foi o forte do país.
A preocupação se justifica. Como bem colocado na decisão que deferiu a liminar, “a redação do comando constitucional citado é clara: as usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas. Interpretando este dispositivo com os art. 21, XXIII, a, e art. 49, XIV, verifica-se que a intenção do constituinte originário foi a de impor a participação do Congresso Nacional nas atividades nucleares do país, mormente quanto a localização das usinas nucleares.
E não poderia ser diferente, dada a importância do tema da localização das usinas em função dos riscos que gera para a população próxima. Assim, o Constituinte originário previu a participação popular na escolha da localidade em que seriam as usinas instaladas, através de representação indireta por seus mandatários eleitos aos cargos do Poder Legislativo”.
Também acho que não há que se falar — apesar das opiniões contrárias, especialmente de alguns funcionários da Eletronuclear — que o licenciamento da usina não estaria sujeito a essa exigência por ter sido iniciado sob a égide de decreto presidencial anterior ao atual regime constitucional. Convenhamos, esse entendimento, bem colocado pelo juiz Raffaele em sua decisão, é amparado em um princípio jurídico que diz que, no início da vigência de toda nova Constituição, as normas anteriores a ela devem passar por um processo, quase automático, de recepção pela nova ordem. Assim, as normas infraconstitucionais que forem compatíveis com a nova Constituição permanecem vigentes; as que não forem — e na medida em que não forem — estarão revogadas. O processo de licenciamento estabelecido inicialmente para Angra 3, pelas suas incompatibilidades com a sistemática prevista na Constituição de 1988, não pode ser oposto a esse, justamente por se tratar de um empreendimento dessa espécie, cujas trágicas conseqüências ambientais podem ser atestadas por Chernobil.
Há quem diga — mais precisamente o Sr. Leonam dos Santos Guimarães, assistente da presidência da Eletronuclear, em nota oficial — que a lei que define a localização da usina só poderia ser promulgada após a obtenção da licença prévia do Ibama, já que seria “ilógico o Congresso aprovar uma lei que autorize a localização de uma usina nuclear sem ter garantia da viabilidade ambiental do local onde ela será instalada”. Ele afirmou, ainda, segundo a agência de notícias do Ministério de Ciência e Tecnologia, que a Constituição é clara ao se referir à instalação das usinas e não ao estudo de sua viabilidade ambiental em um determinado local. No entanto, acho que essa forma de ver as coisas confunde os conceitos de estudo de viabilidade e de licenciamento ambiental.
O primeiro se faz em fase de projeto para se analisar a viabilidade ou inviabilidade de um determinado empreendimento. Ele é realizado pelas pessoas interessadas no projeto, sejam elas de direito público ou privado, antes de bater o martelo em um determinado investimento. O outro se faz necessariamente pelo Poder Público, para estabelecer a viabilidade ou inviabilidade ambiental de um determinado empreendimento em um determinado lugar. Ou seja, o que não tem nenhum sentido é iniciar o processo de licenciamento sem saber onde o empreendimento será implantado. Não cabe ao Ibama decidir onde serão implementados os empreendimentos sujeitos a licenciamento, mas apenas dizer se o local escolhido para uma determinada obra é ambientalmente adequado para ela, quais serão os seus impactos sobre a área e as eventuais medidas compensatórias a serem adotadas.
Risco imediato?
O que mais traz dúvidas é a real necessidade de se conceder uma medida liminar para paralisar imediatamente o processo de licenciamento. Como a própria decisão destaca, “o licenciamento ambiental é etapa prévia e obrigatória à construção da usina nuclear, o fato de estarem os réus expedindo atos tendentes ao licenciamento importa dizer que as construções ainda não começaram ou, se começaram antes do licenciamento, demonstrada está uma irregularidade que certamente não passará em branco aos acurados olhos do parquet federal.” Ou seja, se o processo de licenciamento ambiental é obrigatório e prévio à construção da usina, a sua conclusão não traz qualquer risco de difícil ou impossível reparação. Basta que se impeça o início das obras — apenas para lembrar: quando eu mencionei, no segundo parágrafo desta coluna, que as obras da usina são do início da década de 1980, tirei essa afirmação da página do Ministério de Ciência e Tecnologia na internet, o que pode indicar uma grave subversão do processo de licenciamento.
De fato, concluída pelo menos a etapa de expedição de licença prévia, se concedida, indicará que aquele local é adequado para a obra, o que só viria a facilitar o trabalho do legislador; se negada, daria a chance de se procurar um novo lugar, que seja adequado, antes que a lei que define a localização fosse promulgada.
Trata-se, portanto, de excesso de cautela interromper imediatamente o licenciamento. Basta que se impeçam as suas conseqüências concretas para se evitar a descoberta de falhas ou irregularidades no processo de licenciamento já com as obras adiantadas, quando, sem dúvida, aparecerão os velhos argumentos econômicos que levaram adiante, por exemplo, a criminosa usina de Barra Grande, construída e concluída sobre uma fraude que foi descoberta já no final de sua construção, para citar apenas um caso.
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