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A insustentável Lei Geral do Licenciamento Ambiental

O que se viu na Câmara dos Deputados foi confusão. Desfiaram discursos em sua grande maioria sem fundamentação, em defesa do “desenvolvimento”, onde a proteção do meio ambiente figurou apenas como empecilho

13 de maio de 2021 · 4 anos atrás
  • Carlos Bocuhy

    Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)

Apresentado pelo deputado federal Neri Geller foi aprovado na noite de quarta-feira, 12 de maio. Hoje, dia 13, serão votados os destaques ao projeto.

A aprovação foi um dos maiores retrocessos normativos que o Brasil já presenciou. A Câmara dos Deputados conta com uma minoria de deputados independentes e conscientes sobre os temas da sustentabilidade. Porém, há  uma maciça frente do agronegócio, ligada à política ambiental nefasta do Executivo federal.  Essa massa caminhou, em passo de boiada, rumo à simplificação daquilo que é, de per si, complexo por natureza.

O licenciamento ambiental não é simplificável, pois a teia da vida é complexa. Seu correto dimensionamento é o único caminho para a sustentabilidade. De outro lado, a realidade civilizatória e a sociedade contemporânea exigem essa adequação. 

Os princípios da sustentabilidade e da avaliação prévia de impactos ambientais estão bem clarificados no Art.4º, I, da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6938/81), que aponta “a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico”.

Note-se que o objetivo principal se encontra no final da frase, uma vez que a proteção do meio ambiente e o equilíbrio ecológico são condições basilares para o desenvolvimento, de forma que este não se torne um mero crescimento – e assim sendo, tem precedência sobre os interesses econômicos.

Com esta compreensão,  a Constituição Federal garante a todos os brasileiros o direito ao meio ambiente equilibrado e saudável qualidade de vida.

O que se viu na Câmara dos Deputados foi confusão. Desfiaram discursos em sua grande maioria sem fundamentação, em defesa do “desenvolvimento”, onde a proteção do meio ambiente figurou apenas como empecilho. É desnecessário comentar sobre a capacidade de discernimento dos deputados.

Devemos analisar o que representa, de fato, o licenciamento ambiental e a avaliação de impacto ambiental – e como e em que condições tem ocorrido este processo em nossa realidade. A pergunta agora é: quais as medidas possíveis e os caminhos que a sociedade brasileira deve trilhar a partir deste momento de retrocesso? 

A conjuntura nos revela que a confusão vem de longe. Os debates nos licenciamentos costumam ser acalorados. Na ausência do planejamento ambiental, o licenciamento muitas vezes ganha contornos de um debate sobre políticas públicas. A lacuna de planejamento e a falta de diretrizes para a sustentabilidade produzem empreendimentos inadequados, apresentados à sociedade sem maturidade político-ambiental. 

Quem observou os eventos de Brumadinho, Mariana, Belo Monte e Balbina entende que setores econômicos irresponsáveis empreendem ambicionando projetos de grande porte e com significativos impactos ambientais, já que a lucratividade demanda escala.

Encontro do Rio Piranga com o Rio do Carmo, dando origem ao Rio Doce, atingido pelo rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco, em Minas Gerais. Imagem de julho de 2016. Foto: Felipe Werneck/Ibama.

Na maior parte dos casos tais projetos contratam empresas que apresentam avaliações de qualidade discutível, com deficiências no diagnóstico, consumado sobre más alternativas locacionais. Isso se deve muitas vezes à manipulação dos empreendedores, que abandonam a seriedade técnica para imprimir os resultados que pretendem obter.

As lacunas no planejamento e a baixa qualidade dos estudos apresentados têm sido, em muitos casos, o maior motivo de demora dos processos de licenciamento ambiental. Muitas vezes há tentativas de aprovar como viáveis projetos que não o são — e que  permanecem emperrados por não conseguirem demonstrar sua viabilidade ambiental. 

Sem generalizar, há bons consultores, que seguem princípios éticos. A própria Associação Brasileira para Avaliação de Impacto (ABAI) defende entre seus valores o diálogo, a pluralidade, transparência, participação, rigor técnico e sustentabilidade. Há bons empreendedores, voltados aos princípios da Environmental, Social and Governance (ESG) e que já entenderam que o caminho da sustentabilidade é uma via global com futuro e sem retorno.  

De outro lado, os órgãos ambientais, com falta de estrutura e pessoal, são pressionados politicamente para convalidar projetos ruins. Alguns resistem bravamente, por questões de caráter e profissionalismo, ou até mesmo porque os mecanismos de controle social funcionam, seja por meio de atuação do Ministério Público, da sociedade civil e da visibilidade proporcionada por veículos de imprensa investigativa. 

Neste terreno pantanoso, onde reside a incapacidade e falta de lucidez, acabou sendo mais fácil colocar a culpa no licenciamento ambiental. Assim foi também para os órgãos ambientais, ansiosos para se livrar da responsabilidade e da pressão. Essa estranha coalizão  entre setores econômicos e governos por facilitações e simplificações surge travestida de modernização e desburocratização–  e já  revelou quando os próprios órgãos ambientais partiram para uma iniciativa de revisão do licenciamento, que foi bloqueada por uma eficiente atuação da sociedade civil no Conama, com apoio do Ministério Público Federal. 

Quis a história que esta matéria, de grande relevância ambiental, caísse no colo do Congresso Nacional, como já ocorreu com o Código Florestal, que acabou sendo significativamente dilacerado para atender ao maciço interesse do agronegócio que lá habita.   

A proposta aprovada na quarta-feira traz como premissa a facilitação e nada mais faz do que se insurgir contra a essência do licenciamento ambiental, cujo princípio é a correta e constitucional avaliação prévia de impactos ambientais.

Quem observou os eventos de Brumadinho, Mariana, Belo Monte e Balbina entende que setores econômicos irresponsáveis empreendem ambicionando projetos de grande porte e com significativos impactos ambientais, já que a lucratividade demanda escala.

A proposta transborda inconstitucionalidade. Tenta minar o princípio da gestão participativa, da participação social, ao excluir da obrigatoriedade do licenciamento empreendimentos impactantes que, como qualquer outro, afeta comunidades e o meio ambiente. Inova ao instituir o licenciamento autodeclaratório, sem controle social — em que pese a gestão participativa na área ambiental estar consagrada na Constituição, já que a população será a principal destinatária dos efeitos positivos ou negativos das questões ambientais, portanto de interesse comum.  

Para maiores facilitações, a proposta permite estudos de impacto ambiental com dados reutilizados de outros projetos, institucionalizando o copia e cola que hoje já se comprova em muitos casos.  Retira a percepção abrangente e estrutural sobre impactos sinérgicos, pois libera do licenciamento empreendimentos de baixo impacto — sem considerar que, em seu conjunto e a depender da plataforma ambiental em que se inserem, os impactos sinérgicos e cumulativos podem ser muito mais significativos para o meio ambiente e para as comunidades do que seriam causados por um grande empreendimento.

Os pontos já citados comprovam a ineficácia da proposta. Entre dezenas de outros absurdos, atenta ainda contra os direitos dos povos tradicionais e retira  possibilidades para que a sociedade brasileira trilhe o caminho do desenvolvimento sustentável, previsto constitucionalmente.

Finalmente, o PL compromete o patrimônio ambiental e o futuro, semeando insegurança jurídica.

O índice de judicialização deverá aumentar, em função de descumprimento da obrigatoriedade de avaliações prévias e mais precisas sobre os impactos ambientais. Também aumentarão os danos ambientais causados pela imprevidência. Quem os reparará? 

É preciso ressaltar que a comunidade internacional está atenta ao Brasil e às manobras internas para facilitações ambientais, que permitem a produção de commodities às custas da degradação do meio ambiente.

Consequentemente, a aprovação do PL do licenciamento, com claros indicadores de facilitações, aumentará as desconformidades ambientais e será mais um elemento a se refletir negativamente na imagem do Brasil e na balança comercial.

Além disso, há as exigências de regularidade ambiental da Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE), onde o Brasil espera há anos por sua admissão. Também irá confrontar a exigente Comunidade Europeia, enquanto o Mercosul, por inépcia brasileira e na contramão da história, será cada vez mais capitaneado ou protagonizado isoladamente por nossos vizinhos.

A Organização Mundial do Comércio (OMC) tem sido abordada pelos Estados Unidos para instituir mecanismos de penalização por concorrência desleal, praticada por aqueles que se recusam a produzir sem o devido cuidado e investimento na proteção do meio ambiente.  

A aprovação do PL do Licenciamento Ambiental é uma pá de cal na gestão ambiental brasileira e irá arruinar o que restou da combalida imagem do Brasil. O Senado Federal deve acordar e não corroborar com essa proposta absurda. É preciso focar a gênese do problema.

Sobre reações possíveis, ainda restam elementos recursais para combater mais uma inconstitucionalidade, como já reconheceu o STF no caso da resolução Conama 303/2002 — e nas alterações destrutivas que ocorreram na entidade.

Será mais uma batalha árdua, pois em defesa do Congresso sairá a própria Presidência da República, que parece contar com uma inadequada simpatia por parte do Procurador Geral da República. 

A Lei Geral do Licenciamento Ambiental contraria sua própria razão de ser, ao se tornar uma das maiores ameaças à sustentabilidade ambiental do Brasil.

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