A partir do desastre climático no Rio Grande do Sul, circularam imagens chocantes, tristes e aterrorizantes sobre o colapso das cidades. Fotos em que corpos apareciam foram divulgadas pelo influencer Nego Di e levantaram debates nas redes sociais sobre os limites da exposição e do compartilhamento visual de tragédias. O influencer chegou a apagar a postagem e a pedir desculpas à comunidade da rede social X, antigo Twitter. Entre outras denúncias contundentes em suas redes sociais, dá para citar corpos boiando em Canoas, em fotos chocantes que, na verdade, eram de uma tragédia no interior do Rio de Janeiro. Ainda que as imagens pudessem retratar o acontecimento, o que não foi o caso, faltou a ética do cuidado. O jornalismo, por meio dos registros factuais, é construtor de memórias. O que ficará guardado dessa tragédia?
No estado gaúcho, vivem-se dias que parecem cenários de guerra: evacuações em massa, cidades arrasadas, lama por todo o lado. As fotos produzidas neste cenário caótico são uma modalidade de retórica que simplificam, reiteram e agitam os sentidos sobre o acontecimento, lembra Susan Sontag, em seu livro “Sobre a dor dos outros”, quando fala do papel do fotojornalismo durante conflitos. Ao entender que a fotografia tem papel de mobilização coletiva, pensar em uma forma de fazer fotojornalismo amparado pelos preceitos do Jornalismo Ambiental (JA) é preciso.
No âmbito do JA, a fotografia é responsável pelo enriquecimento do sentido do acontecimento, a partir da construção de uma narrativa que vincule os efeitos aos propósitos e resultados das práticas de exploração da natureza. Isso é o que propõe o artigo “Fotografia e ambiente: o que pode uma imagem”, da jornalista e pesquisadora Sinara Sandri. A partir dele, reflete-se sobre como a imagem pode servir de amplificador dos sentidos propostos pelo JA, isto é, por um jornalismo que defenda a cidadania planetária, a pluralidade de vozes, uma postura decolonial perante o mundo.
Um dos pressupostos do JA é o de responsabilidade com a mudança do pensamento. Ele está alinhado com a função pedagógica, proposta por Bueno (2007), por meio da circulação de informações socioambientais corretas e comprometidas com a diversidade. As imagens são meios potentes para difundir novas formas de se relacionar com a natureza, de perceber o mundo. O fotojornalismo é responsável por organizá-las segundo parâmetros que moldaram a forma convencionada de observar o mundo, mas pode transformá-los também.
Embora possa parecer que as fotografias são inocentes de juízos, como se fossem neutras, cada imagem é resultado da escolha consciente – na melhor das hipóteses – do profissional que a está produzindo. No fotojornalismo, a escolha parece ser ancorada aos preceitos do campo jornalístico e das políticas editoriais de cada veículo. Isto é, veículos hegemônicos veiculam fotografias que enfatizam as lógicas dominantes, enquanto a imprensa alternativa tende a mostrar outras imagens, invisibilizadas pela cobertura da cobertura tradicional. Uma imagem sensacionalista pode servir como caça-cliques, levando o espectador a priorizar imagens degradantes do outro. O fotojornalismo pode reforçar a ideia de que é possível nos relacionar com o planeta apenas de forma predatória. Porém, o oposto também é verdade.
A colonialidade está presente no campo jornalístico, com maior ou menor ênfase a depender do tipo de jornalismo (Loose, 2024). Logo, a produção de imagens está enredada neste lugar. Tradicionalmente, o campo do fotojornalismo é masculino e a câmera é portada que nem uma arma, com o objetivo de extrair do outro o que é preciso para fazer sentido fora daquela realidade. As pessoas são reduzidas a fontes ou personagens. Geralmente não há diálogo com o fotógrafo, preocupado com a captura do que melhor representa o acontecimento vivenciado. Já o fotojornalismo decolonial se propõe a pensar a fotografia enquanto transgressora, insurgente, contra-hegemônica e como parte da luta ambiental. Assim, espera-se quebrar a forma de produzir imagens a partir da exposição da vulnerabilidade de indivíduos, como afirmam os pesquisadores Bazílio, Nobre e Carvalho, em “Ética e fotojornalismo contemporâneo decolonial”.
Uma prática fotográfica que seja cuidadosa com quem se está fotografando é uma forma de respeitar o outro. Ao contrário da postura do fotógrafo que chega em localidades distantes para retratar o sofrimento dos outros, deve-se pensar em uma ação implicada com o contexto no qual está situado e que, por isso, consegue ser ético e responsável na hora de realizar seu trabalho.
Fotógrafas como Isis Medeiros já buscam em seus trabalhos a crítica ao modo de produção capitalista e a valorização das populações historicamente vulnerabilizadas, tentando romper com preceitos brancos, normativos e hegemônicos. A profissional foi uma das fundadoras do grupo “Fotógrafos pela Democracia”, um grupo nacional de fotógrafos em defesa da democracia e dos direitos humanos no Brasil. Recentemente, lançou seu primeiro livro ‘15:30’, uma leitura visual dos desdobramentos do crime da mineração em Mariana em 2015.
Em suas postagem no Instagram, Isis se posiciona, criticando a omissão de governos frente a políticas públicas efetivas de justiça social e defendendo os povos indígenas, das populações negras, ribeirinhas, quilombolas, dentre outras bandeiras. Sua postura é a de ativista, corroborando com o princípio do engajamento enquanto atitude crítica em defesa da sustentabilidade da vida.
Para avançarmos em outras narrativas e na ampliação de futuros possíveis, mais fotógrafos posicionados e comprometidos com a mudança de pensamento do mundo são necessários. As imagens propagadas por veículos de comunicação tem poder de formular consensos que podem ou não ser respeitosos com todas as pessoas. Urge, então, a construção dentro do campo ambientalista da ética de comunicadores visuais voltados para a transformação das formas de vida buscando o bem comum.
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