Cobrir tragédias é sempre muito difícil para jornalistas. Quando as perdas ultrapassam gerações, períodos, eras, fica ainda mais complicado descrever a magnitude dos prejuízos. Foi assim em 15 de maio de 2010, quando cobri para O Eco o incêndio que destruiu o acervo científico do Butantan.
Cheguei ao local logo após os Bombeiros terem controlado as chamas e ali permaneci por algumas horas, tentando apreender, compreender, o tamanho do estrago. Acompanhei o trabalho de professores e estudantes no resgate do que ainda poderia ser salvo, o que incluía, além de exemplares únicos de espécies raras ou já extintas, suas pesquisas, escritos, dados compilados ao longo de muitos anos e empenho. Assim como a fumaça que ainda saía das instalações atingidas, a tristeza pairava no ar, densa. Difícil ser imparcial em momentos como este.
No início desta semana, o triste roteiro se repetiu e acompanhei – desta vez de longe – as notícias do incêndio no Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que consumiu parte de sua reserva técnica. “Não foi por falta de aviso”, denunciou em um jornal mineiro o ex-diretor do Museu, o professor Antônio Gilberto Costa. A instituição não tinha um plano para situações de emergência, que existiu internamente e chegou a ser aprovado pelo Conselho do Museu, mas acabou por ser barrado pela reitoria da Universidade, segundo Costa. É o descaso, de novo ele.
Quando a lição será aprendida?
Foi por descaso do poder público e do empresariado cariocas que, em julho de 1978, o Museu de Arte Moderna (MAM) foi atingido por um incêndio e perdeu mais de 90% de seu acervo. O fogo consumiu cerca de mil obras, entre elas trabalhos de Pablo Picasso, Joan Miró, Henri Matisse, René Magritte, Salvador Dali e dos brasileiros Candido Portinari e Di Cavalcanti. Sobreviveram apenas 50 obras, em boa parte esculturas.
Em maio de 2010, no incêndio do Butantan, perdeu-se a maior coleção científica herpetológica (serpentes) do mundo. Foram-se, para sempre, 82 mil espécimes de serpentes e cerca de 450 mil aranhas e escorpiões reunidos por pesquisadores e colaboradores por mais de um século. Muitos dos animais queimados eram exemplares únicos de espécies raras ou já extintas. Isto é, não há qualquer possibilidade de que sejam recuperadas.
À época, o então curador da coleção, o pesquisador Francisco Franco, declarou: “Essa tragédia para a ciência brasileira deve ser usada para salvar as coleções biológicas do Brasil, que estão todas em prédios antigos e inadequados”.
Como a história recente nos conta, este e outros apelos de pesquisadores não foram ouvidos e, oito anos depois, mais um museu ardeu em chamas.
Na noite de 2 de setembro de 2018, um incêndio de grandes proporções consumiu o prédio principal do Museu Nacional do Rio de Janeiro, um palacete colonial que serviu de palácio imperial para Dom Pedro II e sua família.
Perdeu-se, em seis horas de incêndio, quase a totalidade da reserva técnica do setor de paleontologia e a ala expositiva do museu, que abrigava praticamente todos os fósseis de plantas e animais, vertebrados e invertebrados, descobertos no Brasil ao longo do século 19 e nas primeiras décadas do século 20. Foi-se, definitivamente, o testemunho petrificado de dezenas de milhões de anos de evolução da vida no Brasil e na América do Sul.
Na ocasião, muitos brasileiros se ressentiram pela perda do crânio de Luiza – posteriormente reconstruído com os fragmentos encontrados nos escombros – , “a primeira brasileira” cujos achados fósseis foram responsáveis por uma reviravolta no entendimento do povoamento das Américas. Mas Luiza não foi a única atingida. O incêndio no Museu Nacional destruiu parte considerável de suas 20 milhões de peças e documentos, entre eles dezenas de fósseis de dinossauros e centenas de exemplares da megafauna da era do gelo que habitaram terras brasileiras há 2 milhões de anos. Isso sem falar nos milhares de preciosos fósseis de insetos e plantas provenientes das terras e mares do Nordeste quando da abertura do oceano Atlântico, há 110 milhões de anos.
Na última terça-feira (15), sucumbiu ao descaso dos governantes o Museu de História Natural da UFMG, que possuía 265 mil peças e espécimes científicos de áreas da ciência como arqueologia, paleontologia, cartografia histórica, etnografia, botânica, geologia, zoologia e arte popular, além de uma extensa biblioteca. Os danos ainda estão sendo contabilizados, mas sabe-se que, na área vitimada pelo incêndio, ficava guardado o acervo de arqueologia, biologia, arte popular e paleontologia. Lá estavam armazenados restos de esqueletos, sepultamentos de 10 mil anos, todo acervo faunístico e vegetal, e as coleções etnográficas com peças do acervo do povo Maxacali, que vive na região nordeste de Minas Gerais.
Apelos ao vento
Na corajosa entrevista dada ao jornal mineiro esta semana, o professor Antônio Gilberto Costa acusou a UFMG de negligência em relação ao patrimônio, já que havia recursos disponíveis para a realização de obras de melhorias que não foram aplicados. “Que país é esse que a gente vê a todo dia acontecerem essas coisas e ninguém faz nada? Que justiça é essa?”, indagou.
Além do professor Costa, dezenas de outros pesquisadores, estudantes e jornalistas – como eu – vêm denunciando o descaso pelas coleções científicas no país. Acervos mofando, com instalações físicas precárias, remendos na parte elétrica e penúria orçamentária são realidades de nossos museus.
Me pergunto qual será a próxima vítima. Será o Museu de História Nacional da Bahia, o Museu de Zoologia da USP ou o Museu Paraense Emílio Goeldi? Não saberia dizer. O que sei é que, de omissão em omissão, de negligência em negligência, o país vai perdendo para as chamas sua história. E essa pauta, eu não quero mais cobrir.
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