Os recifes coralíneos do Brasil têm atraído interesse científico desde o Século XIX, especialmente a partir da breve incursão de Charles Darwin a Abrolhos e dos estudos pioneiros de seu xará menos conhecido, o canadense Charles Hartt, líder da Comissão Geológica do Império e um dos fundadores das ciências naturais no Brasil.
Relativamente isolados dos recifes do Caribe pela descarga do rio Amazonas e pela imensidão das águas abertas do Atlântico, e também submetidos a águas turvas desfavoráveis para o desenvolvimento de corais, os recifes brasileiros abrigam um conjunto pequeno – mas único – de espécies e formações recifais peculiares, tais como os “chapeirões” de Abrolhos – estruturas carbonáticas que crescem com a forma de cogumelos gigantes com até 20 metros de altura. Esses atributos tão especiais estão concentrados em menos de 0,5% da área recifal do planeta, mas sob a responsabilidade de um país que, infelizmente, tem demonstrado cada vez menos apreço por seu patrimônio natural.
Nas últimas décadas, com o amadurecimento das ciências do mar e a ocupação desenfreada da zona costeira, o conhecimento e as preocupações com o futuro dos recifes brasileiros cresceram significativamente, a par e passo. As anomalias climáticas, a acidificação do oceano, a poluição, a mineração e a sobrepesca têm levado a uma intensa degradação e a um prognóstico sombrio, praticamente unânime junto aos cientistas marinhos, sobre a capacidade desses ecossistemas persistirem ao longo do Século XXI.
As surpresas científicas reservadas pelos recifes brasileiros têm sido muitas e abrangem desde a descrição de espécies de peixes de grande porte e importância comercial, como budiões e vermelhos, até a presença de vastos recifes recobertos por esponjas gigantes, ao largo da foz do Amazonas, e de um recife de coral isolado no sul do estado de São Paulo. Sem falar nos recifes de profundidade, ilustres desconhecidos que abundam nas águas frias, escuras e profundas das bacias petrolíferas de Campos, Santos e do Espírito Santo.
Falaremos aqui sobre um tipo peculiar de recifes que ocorre nas águas relativamente rasas da plataforma continental e que, a despeito de seu gigantismo, permaneceu praticamente desconhecido até o final do Século XX, quando Gilberto Amado-Filho, pesquisador do Jardim Botânico do Rio de Janeiro falecido em 2019, desencadeou uma série de levantamentos ao longo da costa brasileira. Trata-se dos bancos de rodolitos, imensas planícies submersas com dezenas de milhares de quilômetros quadrados recobertas por nódulos de algas coralináceas – as mesmas algas que, juntamente com briozoários (pequenos invertebrados filtradores) e corais, constroem as estruturas recifais bem conhecidas do Nordeste do Brasil. Esses nódulos calcários, soltos e móveis (daí o apelido “rolling stones”), são conhecidos pelos cientistas como rodolitos por serem dominados por algas rodofíceas coralináceas.
Os rodolitos são pouco maiores que uma bola de bilhar e crescem lentamente, acumulando poucos milímetros de carbonato de cálcio a cada ano. No entanto, como vivem centenas de anos (há nódulos vivos com mais de 400 anos!) e ocupam áreas imensas em alta densidade, acumulam vastas quantidades de carbonato de cálcio, o composto cristalino no qual o carbono fica estocado e imobilizado por milhares, ou por vezes milhões, de anos. Cada rodolito, além de ser um reservatório de carbono, também funciona como um pequeno recife que abriga uma flora diversificada de algas moles de crescimento rápido e uma abundante fauna de pequenos invertebrados que, por sua vez, alimentam uma rede complexa de outros organismos de maior porte. Em conjunto, esses mini-recifes formam acumulações com dezenas de metros de altura, cuja produção carbonática só pode ser estimada na ordem das Gigatoneladas, ou seja, na escala dos bilhões de toneladas.
Um estudo pioneiro liderado pela Rede Abrolhos mostrou que essas “rolling stones” do Brasil mineralizam mais de 1 kg de carbonato de cálcio por metro quadrado a cada ano. Em conjunto, a produção carbonática dos rodolitos brasileiros equivale à de todos os recifes do Caribe juntos, representando um componente central para o equilíbrio químico do Atlântico Sul. Assim com a Austrália, temos nosso Grande Recife Coralíneo mas, como bom brasileiro, o gigante não é nada convencional! Apenas em Abrolhos, os bancos de rodolitos ocupam mais de 20.000 quilômetros quadrados, o que equivale a cerca de 10 vezes o tamanho da cidade de São Paulo. Ao longo da costa brasileira, onde ocorrem desde o Amapá até Santa Catarina, as “rolling stones” vivas representam o maior ambiente recifal, mas ainda não temos uma estimativa minimamente confiável da sua área e de como as formações variam em função da latitude, da profundidade e da interação com o continente. Boa parte dos bancos de rodolitos está em profundidades além do alcance dos satélites e mergulhadores, o que explica, pelo menos em parte, a incômoda falta de informações sobre esses gigantes desconhecidos.
Em 13 de janeiro de 2021 novas informações vieram à tona com a publicação, na revista Scientific Reports, de um outro estudo da Rede Abrolhos que chama a atenção para a relevância e para a necessidade de conservação dos bancos de rodolitos. Dessa vez, o foco da pesquisa realizada com parceiros da UFRJ, UNIFESP, UNESP, UFSB e UFES foi compreender o papel das planícies submersas de “rolling stones” vivas como habitat para peixes recifais. Com a utilização de estéreo BRUVS (“Baited Remote Underwater Video Stations”), que consistem em arranjos de câmeras de vídeo que permitem identificar e estimar o tamanho e a biomassa dos peixes que passam diante do dispositivo, foram amostradas 19 localidades do Banco Abrolhos, na Bahia e no Espírito Santo, desde próximo à costa até o talude continental. Boa parte desses locais está em profundidades não acessíveis através de mergulhos convencionais, o que demonstra o imenso potencial dessa ferramenta inovadora para amostragem não-destrutiva, segura e de baixo custo.
Os resultados mostram que o tipo de fundo e a quantidade de luz que chega ao fundo do mar, juntamente com a proteção contra a pesca provida pelo Parque Nacional Marinho, influenciam profundamente a biomassa de peixes e a estrutura das comunidades recifais. Até aí, nenhuma grande surpresa. No entanto, esperávamos que os bancos de rodolitos fossem ambientes marginais, usados por algumas poucas espécies de peixes recifais, o que não se configurou. Na verdade, a riqueza de espécies de peixes nos recifes e bancos de rodolitos foi equivalente. Dos mais de 5000 peixes identificados e medidos, compreendendo 107 espécies, observamos que metade delas ocorreram em recifes e bancos de rodolitos, sendo que 71 espécies (66%) ocorreram apenas ao redor dos chapeirões e recifes em franja e 85 (79%) apenas nos bancos de rodolitos. A distribuição da abundância de peixes recifais também nos surpreendeu, pois quase um terço das espécies que ocorreram nos diferentes tipos de recifes foram mais abundantes nos bancos de rodolitos do que nos chapeirões e recifes em franja. Ou seja, para muitos peixes recifais de Abrolhos, o ambiente marginal parece ser o próprio recife!!
Para nós, cientistas marinhos, constatar que os bancos de rodolitos – maior habitat recifal da costa brasileira – são um ambiente chave para peixes, incluindo muitas espécies de importância comercial, traz imensa alegria e satisfação. Recompensa os anos de esforço, de embarques em condições duras e os poucos recursos para pesquisa. Por outro lado, considerando que estamos nos aproximando da metade do século XXI, e no primeiro ano da Década dos Oceanos, essa descoberta também nos faz refletir sobre a assimetria nos investimentos que dão o tom da nossa relação com o Oceano.
Nosso país, líder em exploração de petróleo em águas fundas e ultra-profundas, segundo maior produtor mundial de minério de ferro e detentor de tantas outras lideranças superlativas na exploração dos recursos naturais, do mar e da terra, carece de conhecimento básico e essencial para que a exploração dos recursos do mar possa ocorrer de forma sustentável. Do atual governo, não há sinais de ações significativas no que diz respeito ao meio ambiente, às ciências do mar, e ao uso racional e justo dos recursos da chamada Amazônia Azul. No entanto, a existência de dezenas de milhares de quilômetros de recifes “rolling stones” sem qualquer medida específica de proteção, muitos deles alvo da exploração de calcário ou em meio a poços de petróleo, deveria soar como um convite para que as indústrias assumam mais protagonismo na geração de conhecimento necessário para sua coexistência longa e saudável com a biodiversidade marinha. Não temos mais tempo a perder esperando que a multiplicação dos espertos peixes ocorra milagrosamente. Se despertarmos tarde para o desafio de conhecer para conservar o Oceano, o patrimônio natural estará irremediavelmente perdido, ou sua recuperação custará caro demais para as próximas gerações.
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Tropical rhodolith beds are a major and belittled reef fish habitat – Scientific Reports
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Pois é, e uma enorme área de rodolitos está a leste do atual Parque de Abrolhos, que só cobre 1,8 % do Banco de coral, e para cuja proposta de ampliação esse tal de Rodrigo trabalhou CONTRA. Baita hipocrisia escrever n’O Eco e viver arengando os pescadores contra a conservação.