“Na minha primeira visita à zona, os jardins floresciam, a relva jovem brilhava alegremente à luz do sol. Os pássaros cantavam. Um mundo tão… tão familiar. O meu primeiro pensamento foi que tudo estava no lugar, tudo era como antes. A mesma terra, a mesma água, as mesmas árvores. A forma, as cores e os aromas eram eternos e ninguém seria capaz de modifica-los”.
A passagem é transcrita do livro “Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear”, de Svetlana Aleksiévitch, Prêmio Nobel de Literatura 2015, já citada noutro artigo escrito para O Eco.
Já faz mais de uma semana que algumas ruas de São Paulo estão muito mais silenciosas. Não apenas houve uma redução do nível de ruído de escapamentos de automóveis, ônibus e caminhões, mas também o de aviões.
Acompanhando esta regressão dos níveis de poluição sonora, chama a atenção de quem atua na área ambiental e mora numa grande cidade o declínio da concentração de poluentes no ar atmosférico.
A qualidade do ar na Grande São Paulo, de acordo com os dados da agência ambiental paulista (CETESB) tem alcançado o índice “bom” em quase todos os pontos de medição. No dia 21, até mesmo a emblemática cidade de Cubatão, símbolo mundial da degradação ecológica nos anos 1980, apresentava nível satisfatório de qualidade.
A situação na cidade do Rio de Janeiro não era muito diferente: à exceção das estações em Copacabana, São Cristóvão e Bangu, onde a qualidade do ar era considerada regular (pessoas de grupos sensíveis poderiam apresentar tosse seca e cansaço; a população, em geral, não seria afetada), no Centro, Tijuca, Campo Grande e Pedra de Mangaratiba o nível de concentração de poluentes no dia 20 (sexta-feira) era bom.
Não há, porém, absolutamente nada a comemorar. A paralisação dos transportes não é resultado de uma súbita consciência ambiental e do sucesso de uma política de produção e consumo sustentável. Não foi planejada e está acarretando prejuízos gravíssimos ao país (e ao mundo). A redução da poluição sonora, hoje, mais lembra a abertura do livro “Silent Spring”, de Rachel Carson: o silêncio que decorreu da morte dos pássaros após o lançamento de pesticidas na lavoura é antes o silêncio dos cemitérios do que o silêncio repousante de um mundo ecologicamente equilibrado, que só é quebrado pelo canto.
Ainda assim, é possível pensar como Moustapha Dahleb: “De repente, vemos no mundo ocidental que o combustível diminuiu, a poluição diminuiu, as pessoas começaram a ter tempo, tanto tempo que nem sabem o que fazer com isso” (L’humanité ébranlée et la société effrondrée par un petit machin – In: Mediapart, 22.03.2020).
Para além de uma subjetividade necessária para a própria sanidade, fato é que estamos testemunhando mudanças ambientais nos grandes centros urbanos e esta nova realidade deveria merecer estudos científicos aprofundados.
Trata-se de um episódio único na história do planeta pós- revolução industrial e que oferece à comunidade científica a oportunidade de um estudo de campo privilegiadíssimo.
Quais serão os efeitos dessa súbita queda dos níveis de poluição provocada pelos meios de transporte nos ecossistemas, no microclima dos bairros, na fauna doméstica e sinantrópica?
Logo após as observações aparentemente românticas que abrem este texto, prossegue Svetlana Aleksiévitch: “Mas já no primeiro dia me explicaram que não se deve arrancar flores, que é melhor não se sentar na terra e tampouco beber a água dos mananciais. À tardinha, observei os pastores conduzindo o rebanho cansado ao rio; as vacas, ao se aproximarem da água, imediatamente retrocediam. De algum modo intuíam o perigo. E os gatos, me diziam, deixaram de comer os ratos mortos, que se amontoavam no campo e nos pátios. A morte se escondia por toda parte, mas era um tipo diferente de morte, com uma nova máscara. Com aspecto falso”.
Quando, há mais de uma década, numa imoral queda de braço, Anfavea, Petrobrás e ANP conseguiram postergar a adoção dos padrões de qualidade do diesel S10 no Brasil, de acordo com resolução CONAMA que já havia sido concertada há muitos anos, a maior preocupação dos ambientalistas e dos médicos era com os efeitos da poluição com material particulado fino nas pessoas, sobretudo nos mais velhos.
Neste momento, poderão os pesquisadores de doenças de origem cardiorrespiratória analisar os efeitos desta súbita mudança na saúde da população. Enfim, em meio a tanta tristeza, é preciso aproveitar este momento para reafirmar a importância da Ciência, livre e descompromissada dos interesses econômicos, como norte para a construção de uma nova sociedade. COVID-19 não é uma gripezinha, a universidade é necessária, a Terra não é plana e o Direito Ambiental não é um plano internacional de entrega do país aos estrangeiros.
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Essa crise me fez concluir que o mais importante realmente na vida é a saúde e a liberdade.
Ao revés, sr.jornalista, o texto indica o caminho para que se adquira noção do que deve ser feito para uma sociedade menos desigual: observação, estudo e solidariedade.
Parabéns, Prof. Guilherme.
Mais um sem noção…