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#esselivroéobicho

Poucos são os livros informativos que apresentam às crianças – com arte, ciência e estética – a diversidade da #faunabrasileira

18 de dezembro de 2025
  • Otávio Maia

    Médico veterinário, doutor em Desenvolvimento Sustentável, divulgador e explicador vinculado ao Laboratório de Informação para a Sustentabilidade do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia – Ibict

Em 1974, eu precisei passar por uma cirurgia de emergência: apêndice supurado, peritonite aguda e toxemia. Aos cinco anos, eu me orgulhava – não de ter sobrevivido – de ser capaz de repetir para muitos curiosos o diagnóstico quase funesto, e mostrar o corte suturado com 52 pontos no abdômen infantil. Em casa, deixado o hospital, ao lado da minha cama – transferida do quarto que eu dividia com meus dois irmãos mais velhos para o da minha mãe –, encaixada entre ela e a mesa de cabeceira, uma sacola cheia de livros de histórias protagonizadas por animais. 

Cresci acompanhado dos HQs da Disney – porque os personagens eram animais – e escutando histórias gravadas em LPs coloridos que giravam na pequena vitrola enquanto eu folheava as revistinhas que os acompanhavam mesmo sem saber ler. Na mesma vitrola, minha mãe colocava uma agulha especial e selecionava a “rotação 78” (rpm) para os frágeis discos de goma-laca – um polímero natural que precedeu o vinil, e que tornava os discos pesados e quebradiços – com gravações de orquestras e cantores eruditos. Eu ainda os tenho, os discos – que não quebraram – e a vitrola vermelha – que funciona a pilha ou à eletricidade –, substituta da primeira, branca, à pilha. Na minha casa havia LPs, violões, um piano Pleyel do século XIX, muitos livros e coleções, como os Clássicos da Editora Abril, capas vermelhas tipografadas em dourado, a obra de Érico Veríssimo, em capas azuis também tipografadas em dourado, uma coleção de Dostoiévski, outra dos Irmãos Grimm, os cinco pesados volumes do Dicionário Caldas Aulete que cedo aprendi a consultar. Havia uma segunda coleção da Editora Abril – cujas capas também eram vermelhas –, com dois volumes dedicados a histórias da Disney, praticamente desmantelados de tanto serem folheados. 

Na casa da Vozinha – avó materna –, onde eu gostava de estar porque tinha quintal e cachorro, uma prateleira fixada na parede de um dos quartos guardava A porquinha do rabinho enrolado, de Teresinha Casasanta, publicado pela Editora do Brasil em 1968, cujas ilustrações foram coloridas a lápis. Não sei dizer quantas vezes o folheei. Agora, ele descansa na minha estante, ao lado de Os colegas, de Lygia Bojunga, publicado pela Editora José Olympio em 1972, outra obra que marcou a minha infância de leitor.

“E a gente canta » E a gente dança » E a gente não se cansa » De ser criança » A gente brinca » Na nossa velha infância” (Velha infância, do CD Tribalistas)

Eu gostava dos livros – talvez por crescer rodeado deles –, revistas e produções televisivas e cinematográficas “de bichos”, com bichos, sobre bichos. Muitas “memórias da divulgação científica”… Na TV – na “televisão” preto e branco, que tinha um tipo de acrílico azul sobre a tela para criar a ilusão de uma imagem colorida,  substituída por uma colorida na qual os canais eram selecionados em teclas ao invés do grande botão giratório que fazia um clique a cada canal selecionado –, O mundo animal apresentado por Bill Burrud – exibido nas manhãs da segunda metade da década de 1970 pela Rede Globo –, Daktari, Tarzan, As aventuras de Daniel Boone, Flipper, A turma do Zé Colméia – paródia ao comportamento dos ursos do Parque Nacional de Yellowstone, nos EUA –, A História de Elsa (Born free) – 13 episódios baseados no livro (1960) e no filme homônimos (1966), que contam a saga da leoa que permaneceu sob os cuidados do casal Adamson no Parque Nacional de Meru, no Quênia (uma das primeiras experiências de reabilitação da história da conservação) –, os documentários do celebrado inglês David Attenborough, reunidos nas 18 “fitas de VHS”  da coleção Os Desafios da Vida, lançada pela Abril Coleções entre 1996-97, em parceria com a Time Life.

Na estante, os dez volumes de Fauna, os seis de O mundo submarino (de Jacques-Yves Cousteau) – editora Salvat –, os seis volumes de Vida Selvagem – editora Nova Cultural – foram encadernados a partir dos fascículos comprados sempre na mesma banca de jornal a três quadras da minha casa –, os livros de Eurico Santos, o divulgador esquecido – que eu tinha preguiça de ler – e o álbum Animais de Todo o Mundo, para colar os 20 cartões colecionáveis encontrados dentro das embalagens das barras de chocolate Surpresa, com a imagem de um animal  selvagem e informações como nome popular, nome científico, família, habitat, alimentação, reprodução e particularidades. Sem falar de outras encadernações – por exemplo, Conhecer Universal (Abril, 1982), Selos de Todo o Mundo (Nova Cultural, 1986), Patrimônio Mundial (Nova Cultural, 1987), revistas Globo Rural, Ciência Hoje e Superinteressante – e outra leituras marcantes – por exemplo, Brasil: nunca mais (1985), Perestroika: novas ideias para o meu país e o mundo (1988), A história da riqueza dos homens (1936), As veias abertas da América Latina (1971) e Genocídio americano: a guerra do Paraguai (1979).

Na primeira fileira, o divulgador da vida selvagem e influenciador Bill Burrud (1925-1990). Na segunda, o influenciado, autor desta coluna.

Dando um salto de canguru no tempo, ou melhor, de suçuarana – para privilegiar a #faunabrasileira –, em 2011, já servidor público, “caí de paraquedas” em “mares nunca dantes navegados”. Eu me envolvi na revisão de uma cartilha sobre sustentabilidade, para crianças, da qual saltei para ter com o “pai da Turma da Mônica”, editar um livro, editar um segundo livro, e dar outro salto – um reverso de 4,5 mortais na posição estendida – para o mundo imaginativo da literatura infantil, ou “literatura para as infâncias”, expressão, segundo o Gemini, preferida por especialistas em educação que adotam uma visão mais progressista e socioconstrutivista da criança e da educação, reconhecendo que não existe uma infância única e ideal, mas múltiplas infâncias, vividas de maneiras diferentes a depender do contexto social, cultural, econômico e geográfico de cada criança; a literatura, nesse contexto, deve ser diversa e inclusiva, respeitando essas diferentes realidades. Perdoem-me os “universitários”, mas eu prefiro o “infantil” de Caldas Aulete, referente ou inerente à infância ou à criança; próprio para crianças.

Comecei a farejar pelas livrarias e sebos procurando #livrodebicho da #faunabrasileira, porque livro com espécies exóticas – aquelas que não têm a sua distribuição natural compreendida dentro do território nacional e nas águas jurisdicionais brasileiras –, esses existem de montão. Um rápido exercício de busca na seção de livros infantis em português, de uma livraria virtual tão grande como a floresta Amazônica – antes do desmatamento e das queimadas –, vai resultar em 192 livros protagonizados por ursos, 191 por coelhos, 126 por leões, 89 por elefantes, 87 por borboletas, 81 por lobos (maus e bons), 70 por macacos, 62 por girafas, 57 por jacarés, 51 por tigres, 49 por baleias, 47 por tubarões, 45 por pandas-gigantes, 30 por papagaios, 29 por tatus, 25 por golfinhos, 16 por focas, 13 por onças, 13 por tucanos, etc. etc. A despeito da inquestionável imprecisão da busca, ela se presta para revelar a abundância de livros cujos protagonistas são espécies da fauna exótica em detrimento à fauna brasileira que, por acaso, é a mais diversa do planeta.

As editoras poderiam demonstrar pela fauna nacional o mesmo interesse comercial direcionado à fauna exógena, com os mesmos atrativos estéticos e precisão biológica – obrigatória nos livros informativos e desejável, na medida do possível, nos de ficção –, com frequência negligenciada. Penso ser um bom momento desta coluna para destacar pedrinhas brilhantes que ficaram na bateia. Em Animais da nossa terra (2003), “pela primeira vez um livro infantil traz informações precisas sobre animais dos diversos ecossistemas brasileiros. Ricamente ilustrado com esculturas de papel, a obra revela a beleza e o encantamento da nossa fauna. Uma leitura informativa e prazerosa para alunos e professores”. Em Brasil 100 palavras (2014), bichos e plantas de cada bioma são representados por caricaturas coloridas acompanhadas de curiosidades. Um livrão informativo que não pode faltar na estante da criançada.

Paulo Vanzolini (1924-2013), que se notabilizou como zoólogo mas também como sambista, apresenta sua paixão pelos bichos brasileiros em 80 verbetes acompanhados de ilustrações expressivas que atraem cientistas e crianças em Terra Papagalorum (2019). E por falar em samba, Bichos de cá (2020) apresenta a fauna brasileira acompanhada de canções com ritmos regionais. No Youtube, é possível escutar todas as músicas do livro, gravadas pelo grupo Nhambuzim. Bicho que chama bicho (2025) – de Mateus Rios, um craque da retratação da fauna brasileira – é um dos livros mais incríveis e surpreendentes que tive a alegria de ler. E no Livro vermelho das crianças (2015), informações sobre a conservação da fauna, histórias e curiosidades sobre 50 espécies ameaçadas de extinção no Brasil. A obra tem mais de 60 mil downloads – então não é só um jabá.

Pedrinhas brilhantes que ficaram na bateia.

Em 2020, a consternação tomou conta do casal Manu Alves e Rafa Mayer frente às queimadas no Pantanal, quando cerca de 25% do bioma foi consumido pelo fogo. Artistas plásticos especializados em pintura e papéis de parede para decoração de ambientes para crianças – inconformados com produtos e imagem de florestas que misturavam “um leão, uma girafa, um urso-panda e um bicho-preguiça” por conta das infindáveis referências, sobretudo da fauna africana, em livros, filmes e animações –, decidiram criar e comercializar prints (reproduções de desenhos feitas em papel especial) de animais do Pantanal, transferindo os ganhos com as vendas para ONGs que estavam combatendo as queimadas: “Enquanto na Austrália as pessoas faziam campanhas direcionadas para determinados animais, no Pantanal, os brasileiros nem sabiam o que era um tuiuiú, ave símbolo do bioma”. Na plataforma de financiamento coletivo Catarse, na qual o projeto Manual dos Bichos foi divulgado, o casal relatou: “Mais de 70% das pessoas que viram a nossa campanha não conheciam pelo menos três dos nove animais que ilustramos. Foi assim que surgiu a ideia de criarmos um livro unindo o nosso trabalho lúdico, com uma proposta educativa”. Esse relato me fez lembrar de uma propaganda veiculada na TV, na década de 1990, salvo engano da Fundação Biodiversitas, na qual crianças eram convidadas a desenhar animais, como o leão, o elefante… e o tamanduá-bandeira; “Tamanduá?”, indaga uma das crianças no final da peça.

Os seis volumes – bonitos de ver e legais de ler – da coleção Manual do Bichos, de Manu Alves e Rafa Mayer, publicados entre 2022 e 2025 por meio de “vaquinha virtual”.

A coleção Manual dos Bichos é fruto do esforço do talentoso casal de artistas que apostou na escassez e na demanda por livros informativos sobre a #faunabrasileira. Em cada um dos seis volumes, 27 espécies – número que simboliza quantos são os estados do Brasil, mais o Distrito Federal – são apresentadas pelo nome comum, nome científico, minibiografia com dados biológicos e curiosidades – textos curtos e bem-humorados que tornam a leitura dinâmica –, e uma caricatura feita à mão, colorida com lápis de cor. Enriquecem o projeto gráfico da obra coisas e símbolos que fazem referência aos nomes, hábitos ou habitat dos bichos, criando conexões diretas ou imaginárias – por exemplo, o urucum enfeitando a página do lobo-guará, pincéis e paleta de madeira a da onça-pintada e um helicóptero a do morcego-beija-flor. Além disso, cada volume apresenta o bioma por meio do mapa do Brasil assinalando sua área de ocorrência e descrição das suas características (vegetação, clima, relevância ecológica, etc.). O resultado? Leitura prazerosa, quase uma brincadeira. 

Como fazedor de livro, fiquei com inveja, inveja boa que alimenta a coragem de quem tira da caixola e edita as próprias ideias, buscando apoio na coletividade, que valoriza obras impressas e quer consumir livros informativos que apresentem às crianças – com arte, ciência e estética – a diversidade da #faunabrasileira. Que a coleção Manual dos Bichos seja inspiração para que tenhamos mais e mais “livros de bicho”, de bichos brasileiros.

Procura-se livros informativos sobre a #faunabrasileira.
Histórias e brincadeiras de bichos brasileiros.
A onça-pintada: protagonista de mitos e lendas.
A caça faz parte da cultura, ora para suprir necessidades, ora pelo prazer. Então, não é estranho – e tampouco deveria ser motivo de “cancelamento” – que o escritor Monteiro Lobato tenha descrito, como algo comum ou natural, o violento e cruel encontro da turma do Sítio do Picapau Amarelo com a onça, narrado na obra «A caçada da onça», publicada em 1924.
A diversidade da fauna marinha em histórias ficcionais, versos e em obras informativas, editadas por editoras tradicionais ou disponibilizadas gratuitamente – geralmente em versão eletrônica – por instituições de pesquisa.
A #faunabrasileira nas pinturas de Laurabeatriz, rimas e versos “biológicos” de Lalau.

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