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De A CIVIL ACTION a DARK WATER: 25 anos de história da Advocacia Ambiental sob a ótica do cinema

O filme de Todd Haynes representa tão bem o Direito Ambiental neste final da década de 2010 quanto o de Steven Zaillian o representou nos primeiros anos dos anos 1990

17 de setembro de 2020 · 4 anos atrás
  • Guilherme Purvin

    Pós-doutorando junto ao Depto. de Geografia da FFLCH/USP, graduado em Direito e Letras pela USP. Doutor em Direito (USP). Membro da Academia Latino Americana de Direito Ambiental. Escritor.

Na década de 1990, muito embora já se encontrasse em pleno florescimento o Direito Ambiental, não só nos EUA como em praticamente todo o mundo ocidental, a relação direta entre consumo em massa, poluição industrial e saúde ainda não era explorada no cinema.

Parece que à indústria cinematográfica temas como leucemia, asbestose ou envenenamento causado pela ingestão, aspiração ou mero contato físico com produtos que lotavam prateleiras de supermercados não seriam palatáveis ao grande público – constituiriam roteiros “micados”, fadados ao fracasso de audiência.

É possível que roteiros tenham sido oferecidos para a exploração desse tema, na literatura ou no cinema, mas a pauta ambiental era voltada em especial à chamada agenda verde: conservação de espaços ambientais para a proteção da fauna e da flora ou a poluição no próprio ambiente (ar atmosférico, água e solo).

Há, é claro, exceções. Silkwood – O retrato de uma coragem, estrelado por Meryl Streep, foi um filme lançado na década de 1980 que versava sobre poluição radioativa no ambiente de trabalho. Safe, de Todd Haynes, constitui uma obra cinematográfica pioneira, lançada em 1995, narrando as consequências psicológicas que a contaminação química traz para a vida das pessoas. Erin Brockovich (Steven Soderbergh, 2000), por outro lado, foi grande sucesso de bilheteria e denunciava o envenenamento pela indústria, não por conta de acidentes, mas de forma deliberada, em decorrência das externalidades ambientais no processo de produção.

Pretendo aqui tratar de dois filmes de grande importância para o debate nas salas de aula de Direito Ambiental e que tratam essencialmente de Advocacia Ambiental. Um deles foi dirigido por Steven Zaillian e outro pelo mesmo Todd Haynes de Safe.

A Civil Action / A qualquer preço

Cartaz de “A Civil Action”. Foto: Wikipédia/Divulgação.

Steven Zaillian é mais conhecido por seus trabalhos como roteirista (A lista de Schindler, Tempo de Despertar, Hannibal, O Irlandês, dentre outros) do que propriamente como diretor de cinema. O roteiro de A Civil Action é assinado por Zaillian que, neste caso, também decidiu ser seu produtor executivo e diretor.

Estrelado por John Travolta, o filme conta a história de um advogado especializado na área da responsabilidade civil (ações acidentárias) e que se envolve inesperada no campo da advocacia ambiental, convencendo os seus sócios a patrocinarem uma ação civil em defesa da população de East Woburn, pequena cidade de Massachusetts, cuja água era contaminada por resíduos industriais despejados por uma pequena indústria local chamada Riley Tannery.

Essa contaminação, suspeitava-se, seria a causa de alta incidência de câncer, sobretudo em crianças da região. No filme de Zaillian, os advogados acabam descobrindo que por trás dessa pequena indústria poluidora estão alguns gigantes, as empresas Beatrice Foods e W. R. Grace & Co.

Não se trata de empresas fictícias. Grace é uma gigante da área da indústria química que trabalha preponderantemente em parceria com seus clientes, incluindo, de acordo com o próprio site da empresa, “muitas das marcas mais reconhecidas do mundo”. Em sua própria avaliação, a W.R. Grace & Co. afirma estar comprometida em entregar valor, com segurança e sustentabilidade, aos seus clientes, acionistas e às comunidades onde opera.

Beatrice Foods, por sua vez, foi uma importante empresa norte-americana, fundada em 1894 e extinta em 1990. A Riley Tannery era uma divisão da Beatrice Foods que por muitos anos havia despejado efluentes tóxicos nas águas, contaminando o aquífero subterrâneo que fornecia a água potável para East Woburn. De acordo com o filme, depois de ser absolvida da acusação de responsabilidade pela contaminação, com base em novas evidências apresentadas pela Environmental Protection Agency (EPA), a decisão foi revertida e ambas as empresas foram consideradas responsáveis. Mais informações sobre este caso podem ser obtidas na reportagem Did Water Kill Children in Woburn? In Bellwether Case, Massachusetts Families Link Contamination With Leukemia de Michael Weisskopf, publicada em 3 de abril de 1986, para o Washington Post.

Debatido em sala de aula nos cursos de graduação em Direito Ambiental por aproximadamente cinco anos, este filme permitia levantar uma série de questões, tais como: a) complexidade e custo das perícias ambientais; b) comprovação de elo de causalidade entre fato e dano ambiental e entre o dano ambiental e os efeitos na saúde humana; c) distinção entre aspectos cíveis, penais e administrativos do ilícito ambiental; d) limites do modelo clássico de advocacia privada não corporativa para enfrentamento de lesão a interesses difusos e coletivos; e) papel da administração pública na promoção da defesa da saúde da população.

O filme de Steven Zaillian provocava, até certo ponto, uma certa decepção entre os estudantes de direito que sonhavam em montar seus  próprios escritórios de advocacia para a defesa da população atingida pela poluição. Nele, por não aceitarem um acordo imediato para por fim à demanda, os advogados são levados à bancarrota.

A lógica da advocacia ambiental, notadamente por envolver valores espirituais muito mais elevados do que aqueles que a lógica mercado é capaz de monetizar, difere sensivelmente da advocacia indenitária em seu sentido mais lato, que alcança o Direito do Individual Trabalho, os Acidentes do Trabalho, a Responsabilidade Civil etc. Enquanto nestes ramos a negociação do montante da indenização para se pôr fim à demanda se dá com relativa frequência, quando estamos lidando com a perda da vida de entes queridos, crianças que jamais tiveram qualquer vínculo com os responsáveis pelos danos ambientais e sanitários, muitas vezes o que se coloca é o anseio para que seja feita justiça e punidos exemplarmente os responsáveis pelas decisões corporativas que desencadearam a doença e a morte de inocentes.

Em última análise, era preciso ao professor de Direito Ambiental esclarecer aos estudantes de graduação que, ao menos no Brasil, é perfeitamente possível buscar em juízo essa reparação, não tão facilmente pela advocacia privada, mas pelas três outras funções essenciais à Justiça, a Defensoria Pública, a Advocacia Pública e o Ministério Público. Num patamar mais aprofundado de debate, cabível no âmbito dos cursos de pós-graduação em Direito Ambiental, o filme permitia traçar paralelos entre as class actions e as brasileiras ações civis públicas e ações populares.

Dark Water / O preço da verdade

Dark Water. Foto: Wikipédia/Divulgação.

Nascido na Califórnia no ano de 1961, o diretor, roteirista e produtor cinematográfico norte-americano Todd Haynes tornou-se conhecido como um dos pioneiros do new queer cinema com o curta-metragem Superstar: A história de Karen Carpenter, no qual a cantora pop vitimada de anorexia, é representada como uma boneca. O curta obteve o prêmio do Grande Juri no Sundance Festival.

Seu  longa-metragem Safe, lançado em 1995, foi indicado como o melhor filme do ano por alguns periódicos. Estrelado por Julianne Moore, Safe prenunciava a preocupação do diretor para com a questão ambiental, em especial os efeitos da poluição química difusa na saúde humana.

O filme conta a história de uma mulher que começa a sofrer de intolerância a diversos produtos industrializados, dentre eles o leite, perfumes e até fixadores de cabelo. Safe aproximou o Direito Ambiental ao Direito do Consumidor. Da cena de abertura até o seu desfecho, o filme mostra que há pouco espaço para decisões individuais na busca de proteção diante dos produtos químicos que vêm sendo há décadas espalhados no ambiente e que entram em casa na forma de alimentos, roupas, cosméticos e até mesmo revestimento de sofás e poltronas. O filme reveste-se das características do gênero do terror.

A paciente, vítima de uma “alergia ao século XX”, sofrendo numa época em que pouca atenção que se dava à questão de fundo, isto é, a contaminação deliberada, decidida pelas grandes corporações, pelo lançamento de mercadorias tóxicas para consumo geral – uma época em que a ciência médica no varejo via com descaso os sintomas de pessoas mais sensíveis aos fatores contaminantes, relegando-as ao patamar de pacientes de doenças psiquiátricas. O ambiente supostamente imune à contaminação química, assustadoramente simbolizado por uma cápsula de porcelana, estaria infectado por uma ideologia empresarial barata, em que a teoria da ecologia profunda se mesclava com um ritual de autoajuda e negação da sexualidade.

Troca-se o sufocamento químico por um sufocamento espiritual tão nefasto quanto os próprios poluentes industriais dos quais a paciente buscava afastar-se. Tendo optado por uma terapia alternativa, só lhe resta a autossugestão como saída para não ser tomada como paranoica.

Passados quase 25 anos do lançamento de Safe, Todd Haynes volta a abordar a temática ambiental no filme Dark Waters, que no Brasil recebeu o título “O preço da verdade” – uma tradução que nos remete à do filme comentado de Steven Zaillian. A semelhança, porém, vai além da tradução escolhida no Brasil. Os dois filmes tratam de Advocacia Ambiental, os dois versam sobre casos de contaminação de águas em zona rural por indústrias poderosas, os dois destacam a enorme dificuldade que existe para se chegar a um acordo de compensação ambiental – já que o que está em discussão, como dito antes, não são apenas questões patrimoniais, são as vidas de pessoas inocentes que foram ostensivamente desprezadas pelas poderosas corporações norte-americanas.

“Passados quase 25 anos do lançamento de Safe, Todd Haynes volta a abordar a temática ambiental no filme Dark Waters, que no Brasil recebeu o título O preço da verdade”

Como em A Civil Action, em Dark Waters nos deparamos com dois advogados – o vilão é representado pelo ator Victor Garber, advogado da gigante DuPont, que contracena com o herói, Robert Bilott (Mark Ruffalo). As peças do jogo, porém, estão em posições sutilmente diferentes. Robert Bilott não é um advogado à caça de ações indenizatórias. É membro de um escritório consagrado no meio empresarial e a aceitação do caso decorre apenas no fato de haver o cliente sido indicado por sua avó. Trata-se de um velho fazendeiro, proprietário de um imóvel numa região na qual Bilott passava suas férias na infância. E, à medida em que prossegue a narrativa, a situação vai se diferenciando cada vez mais daquela do filme de Zaillian.

Em pouco tempo, desaparecem as semelhanças entre os dois filmes.

Em A Civil Action, o embate entre a arrogante figura do advogado empresarial formado em Harvard e o simpático defensor da população vítima da poluição formado em Cornell, constitui combustível para a catarse final: embora financeiramente derrotado, o advogado defensor dos humildes se vê recompensado moralmente pela vitória dos atingidos, alcançada graças à atuação da Agência de Proteção Ambiental norte americana (EPA).

Já em Dark Waters, a rapidez com que o advogado Bilott consegue os documentos internos provando que a DuPont envenenou deliberadamente a população com o produto C8, utilizado para a fabricação de teflon, impede que se trabalhe com a construção de um antagonista estereotipado. <Chris O’Falt – “Dark Waters”: How Todd Haynes and Ed Lachman Created a Masterful Nightmare>. Nem a figura do advogado empresarial interpretado por Garber, nem a do CEO da DuPont, Charles Holliday (Barry Mulholland), de breve aparição, são utilizadas pelo diretor para catalisar a antipatia do público pela empresa. Muito mais do que isso, Todd Haynes nos conduz a outro patamar de conscientização sobre o verdadeiro quadro apresentado: estamos, na verdade, mais uma vez no mesmo mundo assustador que havia sido descrito em seu filme Safe há um quarto de século. O inimigo não são os visíveis advogado e CEO da DuPont, mas o sistema como um todo. A extensão do envenenamento provocado pela empresa vai muitíssimo além dos limites da fazenda do vizinho da avó do advogado. Este envenenamento atinge quase 100% da população mundial.

O deus ex machina de A Class Action, isto é, a heróica EPA, que fez justiça no caso da W.R. Grace & Co. e da Beatrice Foods, no filme estrelado por John Travolta, não passa de um fantoche em Dark Waters. Os resultados dos milhares de exames de sangue apresentados como provas do envenenamento da população consumidora das águas na região onde se encontrava o depósito de rejeitos da DuPont, justamente por serem em tão grande número, por serem tão expressivos, demoram demais para serem apresentados.

No início do filme, é possível ouvir um comentário irônico sobre o SuperFund, que escapa do meio de uma conversa entre advogados e empresários: “Por que deveríamos pagar pela poluição causada por terceiros?”. Menina dos olhos do Direito Ambiental norte-americano, o SuperFund entrou num processo de profundo desgaste desde a época de sua criação pelo Comprehensive Environmental Response, Compensation and Liability Act de 1980. O poder da EPA para obrigar os poluidores a repararem os danos ambientais causados regrediu de ano a ano. Sua sistêmica depauperação foi se sentindo ao longo dos anos que se seguiram. No segundo mandato de Clinton, a EPA havia concluído 87 remediações ambientais, número que caiu para 40 no governo George W. Bush, para 20 no primeiro ano do governo Obama e, no mandato seguinte, para apenas 8. Antes do início do governo Trump, havia mais de 1300 áreas na lista de prioridades do SuperFund e 53 milhões de pessoas morando a menos de 5 km das áreas degradadas.

FERRY, David. The One Incredibly Green Thing Donald Trump Has Done

Já quase ao final de Dark Water, é o próprio protagonista que sintetiza o esgotamento das esperanças: a fraude não está no ritmo processual imposto pela DuPont, o próprio sistema se tornou uma fraude. Os membros dos conselhos técnicos governamentais que avaliam os limites de toxicidade dos produtos são indicados pelas próprias indústrias químicas interessadas. A frase soa como se fosse o dístico na entrada do inferno de Dante: Lasciate ogni speranza, o voi che entrate nella difesa dell’ambiente.

O filme de Todd Haynes representa tão bem o Direito Ambiental neste final da década de 2010 quanto o de Steven Zaillian o representou nos primeiros anos dos anos 1990. Sim, é verdade que uma certa dose de satisfação é concedida pelo direito às vítimas da DuPont: uma série de ações individuais é ajuizada pacientemente pelo advogado obcecado pela justiça ambiental e, depois da terceira vitória consecutiva, consegue ele um acordo coletivo com a empresa. Este acordo, porém, em nada modificará a situação patrimonial da gigante do setor químico. O envenenamento já ultrapassou há muito tempo os limites do corpo humano das vítimas e do próprio ambiente, alcançando as instituições.

Apesar das expressivas diferenças existentes entre o direito material e processual brasileiro e o estadunidense, o debate em sala de aula dos filmes A qualquer preço (A civil action) e O preço da verdade (Dark Waters) possibilita um debate profundo sobre a história do Direito Ambiental.

 

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Comentários 3

  1. Marilena diz:

  2. Ricardo A.L.Camargo diz:

    O potencial didático do cinema em geral já foi percebido na primeira metade do século XX, antes mesmo da II Guerra Mundial, e, no que toca aos temas jurídicos, mais no levantamento dos problemas do que nas soluções, torna-se evidente. O texto do Professor Guilherme Purvin de Figueiredo aponta, também, para este aspecto: o levantamento dos problemas, porque as condições concretas para eles existirem podem ocorrer em qualquer lugar, assume um caráter universal, ao passo que as soluções dependem do que estiver no direito positivo de cada lugar. Por outro lado, chama a atenção para o dado de que o cinema de caráter puramente comercial, em que a tensão é o pretexto para a aceitação do que a lógica da narrativa indica como final desejável, pouco tem a fazer em termos dessa conscientização. Os filmes comentados, neste sentido, mostram-se ótimas ferramentas para a conscientização.


  3. JOSE NUZZI NETO diz:

    Texto perspicaz, que abre a mente para um problema atual: o próprio sistema econômico não tem como ser "sustentável"; e a captura dos órgãos reguladores pelos valores desse sistema.
    Parabéns.