Nas últimas três décadas o único governo em que não se criou sequer um Parque Nacional foi o do presidente Ernesto Geisel. Esta afirmação pode levar à precipitada conclusão de que foi um governo insensível à proteção da biodiversidade, ainda mais que seu ministro da agricultura era Alysson Paulinelli, meu antigo professor de mecanização, irrigação e drenagem. Pobre Alysson! Foi por mim advertido, várias vezes, que ficariam conhecidos, ele e o governo, como responsáveis por uma era de cinco anos sem a criação de Parques Nacionais, o que na verdade é muito tempo. A ordem era implementar primeiramente os parques até aquela data existentes. Lembro-me muito bem do então Diretor do Departamento de Parques Nacionais e Reservas Equivalentes (DN) do antigo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal do Ministério da Agricultura, Celso Soares de Castro, especialista em algodão, caminhando na sala da diretoria enquanto decorava o que significam palavras como bioma, biota, ecótono, ecossistema…
Tal cenário realmente não parecia bom. Mas Celso deixou que o IBDF fizesse um convênio com a Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza, estabelecida em agosto de 1958, para que o DN tivesse um quadro multidisciplinar de especialistas e recursos para projetos. Ele até lutou para isso. O tal instrumento deu ao IBDF a flexibilidade que órgãos governamentais não têm.
Foi um convênio enorme, com mais de 80 pessoas contratadas, a maioria de técnicos, que ficaram à disposição do IBDF. Assim surgiram o projeto TAMAR, o Centro de Anilhamento de Aves Migratórias), o Peixe-Boi Marinho, o Grandes Carnívoros, o Centro de Pesquisas de Fauna Silvestre do Pantanal Mato-Grossense e o Projeto Tartaruga de Água Doce. Pela primeira vez em sua história, o IBDF começou a trabalhar com projetos de fauna silvestre. E quando se trata de fauna, costumo dizer que o Brasil é mesmo um “gigante que dorme em berço esplêndido”, pois pouco se faz até hoje para seu manejo.
Naquela época foram contratados especialistas, através do diretor de divisão de fauna, Dr. Renato Petry Leal, que se tornaram nacionalmente conhecidos. Como, entre outros, o ornitólogo Paulo Zuquim Antas, o oceanógrafo Gui Marcovaldi, que ainda coordena o projeto TAMAR, Peter Crashaw, o grande especialista em onça e outros felídeos do nosso país, Américo e Marlize, Jordan Paulo Walauer e Catu, o do peixe-boi, que já morreu. Para tudo isso não faltaram recursos e Celso Soares de Castro, o especialista em algodão, dava a maior força a essa turma e não se metia muito naquilo que não entendia.
Imaginem um instituto florestal, que de forma incipiente começava a trabalhar com recursos marinhos. Era o maior divertimento solicitar mestre-arrais, taifeiro e equipamento de mergulho, radiogoniômetro e embarcação. Além do mais, o departamento cheirava mal, tomado por cascos de tartaruga, crânios, restos de peixe-boi, ossos etc.
Paralelamente, no Sistema de Parques Nacionais e Reservas Biológicas, surgiu em 1976 o documento chamado “Uma Análise de Prioridades de Conservação da Natureza na Amazônia Brasileira”. Tinha à frenre o Dr. Gary Wetterberg, que este mês fará conferência no IV Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, em Curitiba. O documento já indicava, através dos critérios científicos então disponíveis, as áreas prioritárias para o estabelecimento de parques e outras áreas protegidas na imensidão da Amazônia, que só tinha naquele momento o Parque Nacional da Amazônia.
Assim se começou a escolher, dentro das prioridades indicadas, as áreas que seriam submetidas à apreciação superior para criação de muitos Parques Nacionais e Reservas Biológicas. Estes estudos contaram com a colaboração dos conhecidos cientistas, como Paulo Vanzolini, Keith Brown e Sir Guillean Prance, que indicaram os refúgios do pleistoceno na Amazônia.
Os técnicos que trabalharam com o sistema foram do quilate de Ângela Tresinari, Sônia Wiedman, Sérgio Brant, Lourdes Maria Ferreira, Arnaldo Carlos Miller, José Manoel Carvalho de Vasconcelos, Ângela Pantoja, Eduardo Rocha Porto, entre outros. Foi uma época áurea, a dos estudos de campo para a delimitação dos futuros Parques Nacionais e Reservas Biológicas, principalmente, mas não exclusivamente, na Amazônia.
O primeiro Plano do Sistema de Unidades de Conservação saiu publicado, em sua primeira etapa, em 1979. A segunda ficou pronta em 1981. Nesses anos, o Presidente João Figueiredo assinou os decretos de criação da maioria de Parques Nacionais da Amazônia – do Pico da Neblina, do Cabo Orange, dos Pacaás Novos e do Jaú. Saíram também as Reservas Biológicas: Trombetas, Lago Piratuba, Guaporé, Jaru etc. Surgiu a primeira unidade de conservação marinha – a Reserva Biológica Marinha de Atol das Rocas. Vieram o Parque Nacional da Serra da Capivara, na Caatinga, e o do Pantanal Mato-Grossense. Enfim, criaram-se oito milhões de hectares de Parques Nacionais e Reservas Biológicas. Por que tudo isso foi possível? Porque o governo anterior, que parecia tão insensível, permitiu e facultou a preparação de tudo. Não vem ao caso se o regime era ditatorial. Não havia escolha. Era com ele que tínhamos de trabalhar na época.
Nesses anos se comprou ou se regularizou a bagatela de dois milhões de hectares de terras para parques nacionais e reservas biológicas. Podia-se então usar o mecanismo – e os recursos – da reposição florestal para a regularização fundiária. Começou ainda a elaboração dos primeiros planos de manejo de unidades de conservação no Brasil. Vinte e quatro planos foram feitos pela equipe, com a ajuda de professores universitários e especialistas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
A Fundação Brasileira para Conservação da Natureza, primeira ONG a trabalhar com o governo federal nestes assuntos, foi também beneficiada. Até conseguiu comprar a sua sede. Era capitaneada por conservacionistas famosos, como o Dr. José Cândido de Mello Carvalho, Luiz Emídio de Mello Filho, Davi Azambuja, Alceo Magnanini, Adelmar Faria Coimbra Filho e, um pouco mais tarde, o Almirante Ibsen de Gusmão Câmara, que hoje preside a Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação, responsável pelo IV Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, em conjunto com outras ONGs e com órgãos governamentais.
E pensar que tudo foi possível graças ao governo Geisel, que não fez um só parque…
Leia também
Filme posiciona os animais como vítimas invisíveis da crise climática
Produção ressalta que conservar a natureza é o melhor caminho para amenizar novas tragédias causadas por eventos extremos →
Brasil ganha marco pioneiro sobre translocação de animais voltada para conservação
Publicação da Rede Brasileira de Translocações para Conservação (RBTC) traz diretrizes e guia prático para desenvolver ações de manejo de fauna no país →
A última rodada de negociações do Tratado de Plásticos começou. E o que isso tem a ver com a Amazônia?
Reunidos na Coreia do Sul, 175 países precisam decidir o que será feito para combater a poluição plástica no planeta, enquanto os impactos já são sentidos na saúde humana, animal e ambiental →