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Paulinho da Viola: um pioneiro ecologista na MPB

Celebrar os 80 anos de vida deste grande músico brasileiro é também reviver suas músicas que cantam o meio ambiente

21 de novembro de 2022 · 1 anos atrás
  • Guilherme Purvin

    Graduado em Direito e em Letras pela USP. Doutor e Mestre em Direito (USP). Escritor.

No último dia 12, o sambista Paulinho da Viola completou 80 anos de idade. Este artigo é dedicado a esse grande compositor popular, autor de inúmeros sambas que conhecemos de cór, como Argumento, Sei lá Mangueira, Timoneiro e tantos outros, em especial por sua preocupação com a defesa do meio ambiente.

Em 1975, Paulo César Batista de Faria, mais conhecido como Paulinho da Viola, já era um ícone da música popular brasileira, ladeando Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Geraldo Vandré, dentre outros. O talento musical veio de família. Seu pai, Paulo César Faria, integrou a primeira formação do conjunto de chorinho “Época de Ouro”.

Paulinho estreou no grupo “A Voz do Morro”, criado por Zé Keti e contando com as participações de Nelson Sargento, Elton Medeiros, Anescarzinho do Salgueiro, Jair do Cavaquinho, Zé Cruz e Oscar Bigode, que Paulinho tornou-se conhecido, em especial pelo samba “Recado”: Leva o recado a quem me deu tanto dissabor…

Em 1966, lançou o álbum “Na Madrugada”, em parceria com Elton Medeiros, no qual despontava a canção “14 Anos”.

Em 1968, iniciou a carreira solo com o álbum “Paulinho da Viola”, onde pode-se ouvir o hoje clássico “Coisas do mundo, minha nega”.

Mas foi em novembro de 1969, no V Festival de Música Popular Brasileira, da TV Record que Paulinho, já sob o jugo do AI-5, tornou-se conhecido nacionalmente com a canção “Sinal Fechado”, que merecidamente ganhou o 1º lugar. Nela, já se prenuncia a preocupação de Paulinho com questões socioambientais no meio urbano onde as relações sociais são sufocadas pela velocidade imposta pelo capitalismo. Isto, claro, sem nos esquecermos da evidente metáfora do sinal fechado simbolizando a radicalização da ditadura.

Em 1970, Paulinho lança o álbum “Foi um rio que passou em minha vida” e, em 1971, dois LPs com seu nome. Numa das composições do segundo álbum de 1971, intitulada “Consumir é Viver”, Paulinho traça um paralelo entre o consumo de produtos num supermercado e o consumo do desejo: No supermercado onde me encontro / medindo e pesando o teu carrinho / Uma oferta meu desejo vejo, ali / Como artigo de toda a semana / Confortável que não deixa manchas / Teu amor vim receber… O amor é reduzido à condição de mercadoria perecível e, como tal, acaba sendo descartado como resíduo ao transformar-se em ódio e desejo de morte.

Em 1972, Paulinho lança o belíssimo álbum “A dança da solidão” e, em 1973, o igualmente memorável “Nervos de aço”.

Chegamos, finalmente, em 1975, quando Paulinho da Viola, no auge de sua popularidade, é ouvido diariamente na abertura de uma novela da Rede Globo. Trata-se da canção “Pecado Capital”: Dinheiro na mão é vendaval…

A canção que dá título ao álbum de 75, produzido por Mariozinho Rocha para a EMI, é “Amor à Natureza”. Pela primeira vez na música popular brasileira são enfocadas questões ambientais que se tornavam cada vez mais debatidas mundo afora.

A abertura falada da canção imita o estilo dos sambas-enredo de escolas de samba do Rio de Janeiro:

O Grêmio Recreativo Escola de Samba Cenário de Tristeza apresenta seu enredo para o inverno e a primavera de 1975: Amor à Natureza.

Trata-se de um “samba enredo” extemporâneo, para o período de julho a dezembro de 1975, pois o carnaval ocorre no verão, no mês de fevereiro. Esse anúncio dará o tom nada alegre do enredo. Afinal, o nome da escola de samba é “Cenário de Tristeza”. Começa então a parte cantada:

Relíquia do folclore nacional
Joia rara que apresento
Nesta paisagem em que me vejo
No centro da paixão e do tormento

A natureza, em 1975, já não envolve a cidade do Rio de Janeiro como no passado. Por isso, foi transformada em “relíquia”, em “joia rara”, no ambiente que circunda o cantor, cujos sentimentos oscilam entre a paixão e o tormento. E prossegue:

Sem nenhuma ilusão
Neste cenário de tristeza
Relembro momentos de real bravura
Dos que lutaram com ardor
Em nome do amor à natureza

O sambista não tem ilusão de que aquele passado de relativa harmonia entre a cidade e a floresta da Tijuca volte a existir. Assim, num cenário de tristeza pela degradação ambiental, relembra a luta dos primeiros defensores da natureza. Quem seriam eles?

No exterior, seria mais fácil enumerar alguns defensores da natureza, caso de Gifford Pinchot (1865-1946), primeiro chefe do Serviço Florestal dos EUA, de John Muir (1838-1914), fundador do Sierra Club ou de Aldo Leopold (1887-1948), introdutor do conceito de ética da Terra, segundo o qual os seres humanos deveriam deixar de se considerar “conquistadores da natureza” e passar a agir como “cidadãos da natureza”. Confira-se, a esse respeito, o site “Tunes Ambiental“.

O Rio de Janeiro e as suas florestas cercadas por cidade. Foto: Duda Menegassi

No Brasil, o nome que vem imediatamente à lembrança é o de José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), o chamado “Patriarca da Independência”, que na virada do século XVIII para o XIX já lutava pela preservação das matas ciliares e das florestas em geral. Não por mero romantismo ecológico, mas com pensamento claramente fisiocrata: essas florestas eram necessárias para a preservação das águas que haveriam de dessedentar animais e irrigar as plantações.

Outro nome, este contemporâneo da época de lançamento da canção, foi o do biólogo Augusto Ruschi (1915-1986), diretor da Estação Biológica Santa Lúcia, em Santa Teresa, de 1939 até a sua aposentadoria. Geraldo Hasse, citado por Allan Alvaro Santos Jr., no livro “A Implantação da Educação Ambiental no Brasil” (1998) afirma que “Ruschi não falava apenas por si, como botânico cioso de um rico habitat; vocalizava temores difusos de grupos sociais ante a presença de empresas multinacionais na economia brasileira”. Tanto que, já em 1951, organizou no Museu de Biologia Professor Mello Leitão, um curso sobre preservação ambiental. Há que se atentar, porém, que Ruschi não era um nome do passado que “lutou” pela defesa ambiental: ele continuaria a lutar com veemência cada vez maior, até o fim de sua vida, doze anos depois do lançamento do disco de Paulinho.

Mas é claro que existiram muitas outras pessoas que “lutaram com fervor em nome do amor à natureza”, a começar pelos povos originários, integrados às florestas e aos rios, a toda fauna e flora. É plausível acreditar que Paulinho da Viola pretendeu homenagear em sua canção justamente esses heróis anônimos da história do Brasil.

Cinzentas nuvens de fumaça
Umedecendo meus olhos
De aflição e de cansaço
Imensos blocos de concreto
Ocupando todos os espaços
Daquela que já foi a mais bela cidade
Que o mundo inteiro consagrou
Com suas praias tão lindas
Tão cheias de graça, de sonho e de amor

A canção traz a chamada “agenda marrom”, da poluição atmosférica, para integrar o debate centrado na “agenda verde”, da proteção da fauna, flora e elementos abióticos da natureza. Paulinho deixa nestas estrofes patenteado que não fala de uma natureza distante, mas da cidade em que vive, o Rio de Janeiro, com seus “imensos blocos de concreto” (edifícios), compartilhando nesse aspecto os mesmos sentimentos de Tom Jobim, outro grande compositor preocupado com a degradação ambiental e a agressividade do mercado imobiliário naquela que já foi a mais bela cidade.

Flutua no ar o desprezo
Desconsiderando a razão
Que o homem não sabe se vai encontrar
Um jeito de dar um jeito na situação

O compositor fala aqui do momento histórico em que compôs a canção, o ano de 1975. Três anos antes, a Organização das Nações Unidas havia realizado a Conferência sobre Meio Ambiente Humano, em Estocolmo. Foi naquele momento, em que o Brasil foi tachado de inimigo do meio ambiente e em que a cidade de Cubatão foi considerada o maior pesadelo ecológico urbano do planeta, que as pessoas começaram a pensar no que estava acontecendo. Os governos e a maioria silenciosa, contudo, desprezavam essas questões (flutua no ar o desprezo), preferiam agir impensada e irresponsavelmente (desconsiderando a razão). Daí vinha o significado dos versos da canção. Flutuava no ar, ademais, um ceticismo: seria utópico pensar que haveria alguma forma de conter o processo de destruição do meio ambiente, de dar um jeito na situação.

Chegamos, por fim, à última estrofe da canção, que afasta o risco de se crer que a mensagem é niilista e desmobilizadora:

Uma semente atirada
Num solo tão fértil não deve morrer
É sempre uma nova esperança
Que a gente alimenta de sobreviver

A semente a que a canção se refere é o movimento ambientalista que nascia no Brasil. Nos anos que seguem (1974 a 1986), Paulo Nogueira Neto (1922-2019) passa a ocupar o cargo de Secretário Especial do Meio Ambiente, possibilitando a edição da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), além da criação do IBAMA e do CONAMA. Sem essas conquistas, muito dificilmente teria sido realizada a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO-92), na cidade do Rio de Janeiro, ocasião em que foram lançadas a Agenda 21, a Convenção de Mudanças Climáticas e a Convenção de Diversidade Biológica.

Musicalmente, o samba “Amor à Natureza” pode ser considerado um samba-enredo sob todos os aspectos. O acorde de ré maior do cavaquinho de Paulinho da Viola remete a tantos outros sambas, em que o tom é dado por esse instrumento. Paulinho canta acompanhado de coro, em que vozes femininas prevalecem, da mesma forma que nos tradicionais sambas cantados na Marquês de Sapucaí.

A canção mais ouvida nas rádios, porém, foi o tema da novela da Globo, Pecado Capital, que não deixa de ser também outra obra-prima. No ano seguinte, alcança a 17ª posição entre as mais tocadas. Há que se lembrar que a canção de Paulinho era lançada na mesma época em que foram lançados muitos outros clássicos da MPB, dentre os quais Juventude Transviada, de Luís Melodia, O que será, de Chico Buarque e Não deixe o samba morrer, na voz de Alcione.

É preciso dar um basta à impunidade dos garimpos ilegais, da grilagem e desmatamento das florestas, da indústria da construção civil que ergue edifícios totalmente desnecessários sobre nascentes d’água e rios urbanos, ensombrecendo as ruas, tudo em nome do lucro. Não deixemos morrer a semente atirada por Paulinho da Viola num solo tão fértil como o brasileiro.

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