Fotografia

Sob as areias do Sudão

O fotógrafo Claude Iverné, durante dez anos, mirou suas lentes nas caravanas de cameleiros núbios que fazem a Rota dos 40 Dias pelos desertos do Sudão. As imagens são surreais e perturbadoras.

Adriano Gambarini ·
24 de agosto de 2007 · 17 anos atrás

Apesar de estarmos aqui falando e ecoando para todos ouvirem sobre questões ambientais, e naturalmente eu apresentar ensaios fotográficos condizentes com a temática, acredito piamente que a fotografia, na sua essência, deve trazer também o homem em seu ambiente. Logicamente não vou mostrar fotografia de moda ou publicitária, cuja proposta é outra. Eu tenho o viés de uma fotografia totalmente antropológica, apesar de ter me firmado como fotógrafo de natureza. Mas não me considero assim, e por conta disto, me atrai tudo que está relacionado com a documentação do ser humano em seu habitat. Especialmente se trouxer etnias, povos e suas culturas convivendo e se adaptando à dinâmica do mundo e de seus próprios atos. Foi assim que encontrei o trabalho de Claude Iverné, cuja realidade de viajante e crença fotográfica acabam sendo próximas à minha.

Francês que começou sua carreira como fotógrafo de moda, Iverné acompanhou durante 10 anos as caravanas dos povos cameleiros núbios, em busca de vestígios da lendária Rota dos Quarenta Dias, que começa na região de Darfour e vai até a parte egípcia do Sudão. Ao mesmo tempo em que seus trabalhos de moda o levavam a transitar por diversos lugares, o afastavam gradativamente da ‘volatilidade’ deste tipo de fotografia. Ao se introduzir no fascinante mundo do deserto e seus povos, começou a perceber que este tipo de documentação é, antes de tudo, uma busca introspectiva das próprias crenças. A fotografia passa a ser a da observação, e não mais do simples registro sobre algo material. O tempo torna-se fiel e amigo, se conseguimos nos desprender da ansiedade, do ego e do próprio olhar. E foi neste contexto que enxerguei no trabalho deste fotógrafo uma busca maior, quase que um caminhar lento na contramão da rapidez que tomou conta desta arte.

Iverné percorreu por duas vezes todo o trajeto da Rota dos Quarenta Dias, a partir de Dafour até a fronteira egípcia, vivendo o dia-a-dia das caravanas, participando de todas as atividades das tropas, vigília, cozinha e logicamente fotografia e anotações. Percorreu o traçado antigo no lombo de um dromedário, foi responsável pela compra dos animais, celas e comida. Em cada viagem, três a seis meses de permanência o faziam perceber as mudanças, os detalhes, facetas de um povo que há séculos cumpre a mesma rotina. A lentidão do modo de vida nômade permitiu o fotógrafo entrar num universo de detalhes imperceptíveis num primeiro olhar.

Sorrisos ingênuos se misturam à monocromia natural do deserto, a postura desajeitada dos dromedários marca a aridez das dunas e a simplicidade destes povos contradiz os postulados urbanos do que é necessário para se viver. A sua crença em voltar repetidas vezes ao mesmo lugar tem um único propósito, capaz de ser compreendido apenas por quem enxerga a fotografia além de um documento visual: a de que a compreensão de algo só se adquire pela força de conviver com ele. Como viajante Iverné rumou para um caminho sem volta; como fotógrafo trouxe ao mundo moderno o espectro de uma realidade surreal e ao mesmo tempo perturbadora.

  • Adriano Gambarini

    É geólogo de formação, com especialização em Espeleologia. É fotografo profissional desde 92 e autor de 14 livros fotográfico...

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