De Moacyr Castro
Caro Marcos
Vou tomar seu tempo. Só um pouco. Você enriqueceu o meu tempo com o melhor texto publicado na imprensa hoje, uai! E olha que leio uns 15 jornais por dia na Internet. Dever de ofício.Pela primeira vez, você não foi filho de peixe.
É certo que a expansão dos canaviais e seus engenhos de açúcar têm muito a ver com o desmatamento do Nordeste. Mas para um repórter, a história, se ele a soubesse, é bem mais saborosa do que essa constatação simplista. A lavoura canavieira do Nordeste é a raiz das piadas de português, no Brasil a fama vem do início da era colonial, Marcos! E além do próprio Gilberto Freire, se bem me lembro, os historiadores Alice e Paulo P. Canabrava, da USP, narram com mais destaque. Os senhores de escravos, para fazer a combustão em seus engenhos, cortavam as árvores e punham a preciosa madeira para queimar. Décadas e décadas… Não há mata Atlântica nem pacífica que resistam.
Acontece, Marcos, e agora vem a origem da piada, os senhores de engenho amontoavam o bagaço da cana moída e depois faziam uma fogueira com ele!!! Nunca nenhum teve a idéia de usar aquele bagaço para acender seus engenhos e realizar a safra!!! Hoje, os tempos são outros, do plantio à colheita dessa lavoura, seus mais de 100 subprodutos e seu convívio com outras culturas. (Claro que alguns desavisados ainda falam em monocultura, mas são os que conhecem cana só por rótulos de garrafa de pinga.) Alguns exemplos que desmistificam a fama (antes, justa; ora, injusta) desse segmento, o mais dinâmico da economia e do agronegócio nacionais, que cresce 3,5% ao ano, ininterruptamente, há 30 anos nenhum setor se compara. É o que mais emprega, distribui e gera riqueza e recolhe tributos:
— Aquele bagaço que os portugueses punham fogo, há muito gera energia elétrica. Creio que todas as usinas do Estado de São Paulo, pelo menos, sejam auto-suficientes e não usam eletricidade da rede pública. Pelo contrário, em muitas delas o relógio de luz gira o contrário, porque fornecem o excedente para o consumo da sociedade. Só uma das usinas da região de Ribeirão Preto, a pioneira, fornece energia para atender o consumo residencial de Ribeirão Preto 600 mil habitantes. É energia renovável, limpa e a mais barata do mercado. Sua produção não devasta áreas imensas de produção de alimentos com reservatórios vai da caldeira ao poste. E é gerada em sua maior parte durante o período de estiagem, que coincide com o da safra da cana, quando os reservatórios estão baixos e o risco de apagão é maior.
— Falam tanto em mar de cana, mas não falam em mar de pasto, de soja, de milho… E perto desses mares‚ o de cana é o menor. Se o Brasil dobrar sua área plantada com cana, para atender ao mercado americano (como está em seu artigo) ainda não chegará à metade do espaço cultivado com soja no Brasil hoje, perto de 23 milhões de hectares. A cana está com 5,3 milhões e deve chegar a seis na próxima safra. Os milharais ocupam 12,8 milhões. E as pastagens…Nem os bois que a ocupam sabem. Mas veja do que a cana é capaz, Marcos: na verdade, da área de cana, constantemente, pelo menos nesta região de Ribeirão Preto, a maior produtora de cana, açúcar, álcool e derivados (menos cachaça…) do mundo de 20 a 25% está sempre plantado com alguma leguminosa, principalmente soja, amendoim ou feijão. É que a cada quatro/cinco anos se faz a rotação da cana e plantam essas leguminosas. Além de aumentar a oferta (e diminuir o preço) desses alimentos, eles fixam o nitrogênio, adubo caro, que não precisará ser aplicado na cana. Aliás, a cana se irriga com sua própria vinhaça (potássio) e também se aduba com a torta de filtro, que ela deixa na usina, após ser moída. Isso dá uma economia enorrrrrme de fertilizante você não imagina como as multinacionais do adubo adoram…
Mais: a broca (principal doença da cana) se combate com uma mosca, criada em algumas usinas, inimiga mortal da broca. Isso dá outra economia enorrrrme, desta vez, de defensivos. As multinacionais dos agrotóxicos também adoram essas mocas… Assim como muitas empreiteiras adoram esse negócio de co-gerar eletricidade a partir do bagaço de cana: agora, elas perdem duas vezes deixam de fazer hidrelétricas e não ganham créditos de carbono, como a agroindústria canavieira.
Estou certo de que se você ouviu falar mal da cana-de-açúcar em filas de banco, de caixas de supermercados, do cinema, podem ter sido vendedores de adubos e defensivos, engenheiros de empreiteiras e outros mais. Nunca vi produto para gerar mais inimigos. Até na Petrobrás. Verdade! Semanas atrás, o presidente mundial do Banco Sumitomo esteve aqui em Ribeirão Preto (eles também sabem o que é bom para o bolso e para a qualidade do ar) e resumiu: A Petrobrás não acabou com o setor sucroalcooleiro não só por causa da competência dos usineiros, mas graças à força da cana!. Já imaginou o óleo dessa soja ou desse amendoim misturados ao álcool da cana que convive com eles e transformado em biodiesel? Essa nova era já começou.
— É assim, combatida, mas sempre pintando de verde-amarelo as vestes do Brasil, ela já está em 13,5% da matriz energética brasileira. Falar nisso, não fosse o álcool, sabe quando a Petrobrás poderia alardear sua auto-suficiência em petróleo? Sem o álcool, ainda estaríamos importando 240 mil barris de petróleo por dia. Faça as contas: quanto tempo o Brasil levará para produzir mais 240 mil barris diários? Se não fosse a economia do álcool, nesses 31 anos de sua existência como combustível, onde o País arranjaria dinheiro (bilhões de dólares) para investir na prospecção da plataforma continental e elevar sua produção de petróleo?
— Sabe onde o governo encontra uma fonte gigantesca de tributos? Quando o dólar e o real estavam 1 x 1, cada hectare de cana recolhia de impostos, pelo menos na região de Ribeirão Preto, US$ 1.500 por ano, considerando a comercialização da cana, açúcar, álcool e derivados (cachaça, não). Estou atualizando esse cálculo porque mudaram os preços de tudo.
Marcos, vou parar por aqui. Mas creia, este mundo é fascinante. Eu, tão urbano quanto você, mergulhei nele e não quero mais voltar à tona. Se você vier para cá, para este badalado interior paulista do agronegócio, ao passar por uma usina, lembre-se de que a maior contribuição do Programa Nacional do Álcool ao Brasil não é a economia de divisas conquistada pela parceria que o álcool aditivo e o hidratado ofereceram à gasolina; nem a saudável alternativa que os derivados sucroquímicos e álcoolquímicos representam à petroquímica. Jamais um programa de governo, baseado nainiciativa particular, foi tão produtivo e deu ao País tanto conhecimento tecnológico advindo da dedicação e da formação de técnicos especializados. Graças ao investimento empresarial, resultante do Proálcool, o Brasil reúne hoje o maior e mais importante patrimônio de pesquisas nessa área da biomassa.
Essas empresas e seus técnicos especializados revolucionam o País, com descobertas que beneficiam e valorizam, a um tempo, suas terras e sua atmosfera. Transformaram o pé de cana plantado por Martim Afonso de Souza na bandeira que levou o Brasil ao (mais) moderno mundo do agronegócio. São eles que fizeram o Brasil ser o único país capaz de desenvolver uma alternativa econômica, pacífica e ecológica às sucessivas crises do petróleo.
Uma usina de açúcar não é uma ilha. Ela sempre faz parte de uma comunidade. Geralmente, não existe município canavieiro pobre onde a agroindústria da cana é eficiente, eficaz e comprometida com… a comunidade. Pesquisa da USP mostra que os 22 indicadores de qualidade de vida recomendados pela ONU estão em primeiro lugar nos municípios paulistas em que as lavouras de cana predominam.
Para produzir 60 mil litros de álcool é necessário um trabalhador. No Brasil, o setor sucroalcooleiro representava mais de um milhão de empregos. Enquanto isso, no de energia,o petróleo empregava 55 mil pessoas; a eletricidade, 180.500 e o carvão, 12.500. É dessas comunidades do interior do Brasil, principalmente do Estado de São Paulo, que sai a maioria desses especialistas. Muitos deles, a par de suas atividades profissionais nas empresas sucroalcooleiras ou a elas ligadas, são professores das dezenas de faculdades públicas e particulares que fortalecem o orgulho do Brasil Caipira e constroem o Brasil que sabe fazer melhor.
Quem passa pelas modernas usinas brasileiras pode ter certeza de que está diante do reduto da tecnologia e de profissionais mais avançados do mundo da cana, do açúcar, do álcool e seus derivados. Ali, trabalha dia e noite, gente que outras gentes jamais poderiam imaginar empenhadas nesse segmento da economia. Poucos setores empregam trabalhadores com tamanha diversidade de formação e conhecimento. São bibliotecários, advogados, contadores, economistas, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, jornalistas, médicos, veterinários, nutricionistas, dentistas, pedagogos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, secretárias, assistentes sociais, entomologistas, administradores de empresas, biólogos, bioquímicos, analistas de sistemas, enfermeiros de alto padrão, além do exército de engenheiros: agrícolas, agronômicos, civis, de alimentos, de produção, elétricos, eletrônicos, florestais, industriais, mecânicos e químicos — pelo menos 35 profissões de nível universitário, valorizadas com o advento do Proálcool.
Não foram eles que tiraram o diamante do álcool, mas transformam o solo dos canaviais na terra mais produtiva, generosa, diversificada, conservada e valorizada do Brasil. Entre as cidades de Ribeirão Preto e Santa Rita do Passa Quatro, há uma mancha de areião, que o povo sempre chamou de Saara. Essa homenagem‚ ao maior deserto do mundo se desmanchou na vinhaça, que tornou chão fértil o Saara paulista.
Essa jazida‚ de canaviais é hoje o centro de convivência mais variado das lavouras economicamente importantes do Brasil. A região Nordeste de São Paulo, é a maior produtora de cana, açúcar e álcool do mundo, e a terra plantada com cana também é a maior produtora de soja, amendoim, milho, milho de safrinha, feijão de inverno e feijão mucuna. Mas o convívio também se abre para o arroz, a laranja, o limão, a banana, a seringueira, o café, a goiaba, o tomate, o sorgo… Dessa grande diversificação nasceu a referência Califórnia Brasileira. A cultura da cana tem tudo a ver com isso a estrutura sucroalcooleira a serviço dessa diversidade faz essas culturas as mais produtivas e de menor custo do estado.
Outro benefício: a implantação da cultura canavieira é muito cara. São usadas máquinas e equipamentos grandes e especializados. Não se planta cana sem preparar o solo para agüentar os períodos de fortes chuvas, pelo menos por cinco ou dez anos. Com o plantio, o solo começa a ficar coberto com a cana. Já adulta, então, é melhor, porque suas folhas recebem o impacto do pingo de água da chuva (é ele que pulveriza o solo), e distribuem melhor o volume de água, retendo-o na terra. Onde se planta cana não se vê erosão, comum onde há culturas anuais de verão.
Algumas das vantagens do Proálcool eram imprevistas quando de seu lançamento. Uma delas é o impacto ambiental altamente favorável, que nunca tinha sido planejado, nem quando o programa foi projetado. Outra é o benefício social do emprego. Os empresários não haviam avaliado o choque que a produção de álcool teria na grande geração de postos de trabalho, principalmente no interior, onde estão as usinas.
Importante: não é só a quantidade, mas a qualidade do emprego oferecido. A massa de técnicos que trabalha e está sempre se formando no setor — e para o setor — é grande. Com isso, o ganho tecnológico é imenso. Tanto que nos primeiros dez anos de Proálcool, quando ele existiu, mesmo, para valer, houve um ganho de produtividade de cinco por cento ao ano. Isso é assombroso; não tenho conhecimento de outra atividade no País, com tamanho desempenho, compara Cícero Junqueira Franco.
Desculpe-me por tomar seu tempo, mas sei que semeei terra fértil e aberta.
Atenciosamente,
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