Eduardo Pegurier
Nesse último domingo, visitei a Rocinha, maior favela individual do Rio de Janeiro com entre 60 e 100 mil habitantes, dependendo da fonte de dados. Subi pelo lado da Gávea, através da estrada de mesmo nome que vai, serpenteando por curvas apertadas e íngremes, até o bairro de São Conrado. Até o fim da década de 50, essa estrada fazia parte do circuito de rua onde a fórmula 1 corria. Hoje, mesmo para o trânsito normal, é pouco usada, porque boa parte dela serve de rua principal à Rocinha. E a Rocinha é outro país, onde o governo brasileiro tem pouca influência. Em torno, formidáveis montanhas cobertas por Mata Atlântica.
O motivo da ida era terminar a entrevista com o personagem da matéria sobre salário mínimo, que fiz para uma revista de negócios de grande circulação. Acompanhava o fotógrafo encarregado de ilustrar a matéria. Nosso foco era Rodrigo, 24, casado com Josefa, 23. Conheceram-se no Rio depois de migrar da Paraíba, faz sete anos. São pais de João Vítor, 6 , que sustentam trabalhando como faxineiros. Ele em um prédio residencial, ela em uma escola, os dois recebendo um salário mínimo.
A Rocinha vibra com a quantidade de vida que a habita. É gente, motos e vans passando aos montes, ladeados por comércios e atividades de todos os tipos; da padaria ao dentista, da imobiliária à casa de festa, do menor boteco ao restaurante japonês. O motorista da redação para o carro perto da crista em que o morro começa a descer na direção de São Conrado. Saltamos com bastante equipamento, ultrapassamos o meio-fio e começamos uma caminhada por um labirinto de escadas e rampas concretadas. De perto, nada tem uma unidade visual. É um enorme quebra-cabeça montado pela necessidade. Passamos por galinhas soltas, duas crianças, por essas coisas do Brasil, louras de olhos azuis reclamando de ratos à mãe, e observamos emaranhados de fio até chegar a uma escada com degraus que mal cabem um pé inteiro, que dá acesso ao quarto e sala de Rodrigo e outros três iguais. Um pequeno aglomerado encravado no paredão de alvenaria que abriga tanta gente. O lugar é pequeno e modesto, mas, como esperava, dotado de todos os confortos modernos, contando desde TV e máquina de lavar roupas até forno de microondas e DVD player. O próximo objeto de desejo é um computador.
O lado de fora não combina com o que vejo dentro da casa bem cuidada do meu personagem. Esse é o grande contraste da Rocinha. Trata-se de um bairro popular onde vive uma população que já beira ou entrou na classe média, para os padrões de renda brasileiros. Um grupo que não para de prosperar, como Josefa, que só tem a 4ª série completa, mas faz um curso de informática para subir na vida. Entretanto, enquanto seus moradores progridem, vivem num local em que não existem bens públicos. Não há rua nem calçada na porta, o esgoto e a coleta do lixo são precários, e o fornecimento de água e luz, duvidosos – apesar de Rodrigo pagar uma conta de 50 reais por mês à Light, que regularizou boa parte da comunidade. Não há governo, a não ser o mando do ‘dono do morro’ da ocasião.
Subimos numa laje para cumprir o briefing pedido pelo diretor de arte da revista, que queria a família reunida com a favela ao anoitecer de fundo. É fim de tarde, olho o céu e não acredito no que vejo. São pipas. Mas não algumas. Centenas de pequenas pipas multicoloridas coalham o céu, numa cena que não pode ser descrita senão como lírica. Na laje próxima ao meu ponto de vista, vejo cinco garotos, cada um manejando a sua pipa, em alegre batalha com a dos outros. Muitos grupos como esse, espalhados pelas incontáveis lajes da Rocinha, são responsáveis por esse espetáculo imprevisto.
Na cabeça, muitas perguntas tolas e sem resposta. Como pode ter acontecido tal tragédia urbana? Ao mesmo tempo, como ela é bonita vista dessa laje, e, principalmente, tão cheia de vida. Qual será a forma de fazer chegar a urbanização necessária a um grande labirinto habitado? No contraforte do morro onde fica a casa de Rodrigo, não parece haver jeito possível de instalar uma qualidade de vida parecida com a de um bairro razoável. Contornar os obstáculos impostos pela construção afoita de quem busca um teto custa muitas vezes mais do que fazer o mesmo em um local que surgiu antecipando essa estrutura. Removê-la? Primeiro, injusto; segundo, impossível. Como outras situações irreversíveis, só a lenta passagem do tempo pode operar os reparos necessários. Obras custosas, abandono das áreas mais perigosas e insalubres (por pessoas que, esperemos, ganhem cada vez melhor), soluções engenhosas… Fico pensando em qual a maneira de permitir ao Rodrigo obter a vida que merece, pois está cumprindo a parte dele, botando conforto em casa e espremendo poupança de um trabalho braçal com uma folga por semana. Não há resposta que satisfaça a urgência diante dos meus olhos. Parto esperando que um dia a bela montanha ainda esteja ali coberta de mata e que o seu colo ganhe uma urbanidade tão digna quanto o lar que conheci.
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