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Publicado originalmente por Observatório do Clima
Nesta quarta-feira (4), o papa Francisco lançou a encíclica Laudate Deum (Deus Seja Louvado), documento no qual alerta que “o mundo está entrando em colapso e talvez se aproximando de um ponto de ruptura” por causa das mudanças climáticas. A publicação vem depois de oito anos do lançamento da Laudato Si (Louvado Sejas), carta em que já criticava os rumos da sociedade para conter a crise do clima. A atualização volta a defender a eliminação do uso de combustíveis fósseis e um comportamento em harmonia com a natureza.
Para Tzeporah Berman, presidente do Tratado de Não-Proliferação de Combustíveis Fósseis, é animador ver na declaração do chefe da Igreja Católica uma discussão sobre combustíveis fósseis. “Os nossos governos estão renegociando metas de emissão, mas os projetos de fósseis continuam crescendo. E o petróleo, gás e carvão são as principais causas da crise climática”, disse durante evento on-line realizado pelo Movimento Laudato Si nesta quarta-feira para discutir sobre o conteúdo da encíclica.
De acordo com Berman, a sociedade precisa reconhecer e enfrentar a crise climática. “Temos que bater na porta dos outros, mandar abaixo-assinados, pedir que os governos ajam para que essas aprovações não aconteçam, para que o capital político, econômico e social vá para as energias limpas”, disse após destacar que o país dela, o Canadá, não para de arder em chamas por causa da influência do clima. O Canadá, que é o quarto maior produtor de petróleo do mundo, já teve 18,6 milhões de hectares de florestas devastadas por incêndios somente neste ano. Quase 800 incêndios estão ativos, sendo que a maioria está fora de controle.
A Laudate Deum é vista como uma inspiração pela ativista Ridhima Pandey para continuar a luta pelo clima. “Essa é uma crise que impacta todo o mundo, não é algo que o papa está inventando. Ele nos diz que temos que agir”, disse a indiana de 18 anos que começou o ativismo pelo clima aos nove.
Segundo o papa, a situação climática tem se tornado cada vez mais urgente, o que fez com que a igreja católica reforçasse e completasse o que foi manifestado em 2015. A encíclica está dividida em seis capítulos e 73 pontos. O documento foi escrito com base em informações científicas, incluindo o relatório-síntese do IPCC (sigla em inglês para Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, da ONU).
O primeiro capítulo é nomeado de “a crise climática global”. Nele, Francisco diz que por mais que alguém tente negar, esconder ou relativizar os sinais das mudanças climáticas, eles se impõem com cada vez mais força. “Ninguém pode ignorar que, nos últimos anos, temos assistido a fenômenos extremos, a períodos frequentes de calor anormal, seca e outros sinais da terra que são apenas algumas expressões palpáveis de uma doença silenciosa que nos afeta”, diz. O papa ainda ressalta que é fato que as ações humanas aumentam a probabilidade desses fenômenos extremos ocorrerem com mais frequência e intensidade.
O pontífice ainda destaca o papel dos negacionistas climáticos, que minimizam o problema e tentam gerar confusão. De acordo com Francisco, ele se sentiu obrigado a fazer especificações, que podem parecer óbvias, justamente por causa de opiniões “ridicularizadoras e poucos racionais” que encontra, inclusive, dentro da Igreja.
Johan Rockström, cientista sueco e diretor do Instituto para Pesquisa de Impacto Climático de Potsdam, comentou no evento do Movimento Laudato Si que não há tempo para debater com essas vozes marginais negacionistas. “Acho que não devemos debater com essas pessoas porque as evidências científicas são tão enormes que nós não temos mais dúvidas de que nós estamos causando o aquecimento climático”, defendeu.
O papa Francisco também lembra na carta que é desinformado com frequência que os esforços para mitigar as alterações climáticas, como a redução do uso de combustíveis fósseis e o desenvolvimento de energia limpa, irão diminuir o número de postos de trabalho. Ele rebate o argumento explicando que são os impactos das mudanças do clima que estão deixando pessoas desamparadas e que uma transição bem gerida pode gerar emprego em diferentes setores.
No capítulo seguinte, lembrou que na Laudato Si deu uma breve explicação sobre o paradigma tecnocrático, que passa uma ideia de crescimento tecnológico e econômico infinito e ilimitado, que está na base do processo de degradação ambiental. Aqui, o papa enfatiza que um ambiente saudável é também produto da interação humana com o meio ambiente, como fazem os indígenas.
Outro ponto de destaque é o que ele chama de “decadência ética do poder real” disfarçada pelo marketing e pela desinformação. Um exemplo disso é quando há interesse em iniciar um projeto com grande impacto ambiental. O papa explica que os interessados nesses projetos iludem a população local com o argumento de que o empreendimento irá gerar progresso, oportunidades econômicas e desenvolvimento. “Na realidade, porém, falta um verdadeiro interesse pelo futuro destas pessoas, porque não é dito a elas claramente que, na sequência, terão uma terra devastada, condições muito mais desfavoráveis para viver e prosperar (…), para além do dano global”, diz.
O terceiro capítulo é dedicado à fragilidade da política internacional. O papa convida os leitores a reconhecerem que muitos grupos e organizações da sociedade civil ajudam a compensar as deficiências da comunidade internacional. Destaca que a sociedade civil é capaz de criar dinâmicas eficazes que a ONU não consegue.
Pressupõe que é preciso adotar um novo mecanismo para tomadas de decisões que considerem espaços para diálogo, consulta, arbitragem, resolução de conflitos e supervisão. Na visão do Santo Padre, trata-se de uma maior “democratização” na esfera global para expressar e incluir diversas situações.
O quarto capítulo é dedicado às Conferências das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas. Francisco comenta que os acordos feitos nesses eventos tiveram um baixo nível de implementação, pois não foram estabelecidos mecanismos adequados de controle, revisão periódica e sanção das violações. “As negociações internacionais não podem avançar significativamente por causa das posições dos países que privilegiam os seus interesses nacionais sobre o bem comum global”, citou na carta.
O quinto capítulo fala sobre a próxima Conferência das Partes (COP28), que será nos Emirados Árabes, um grande produtor de combustíveis fósseis. Francisco diz que, se a COP28 quiser se tornar histórica, precisa se empenhar para uma transição energética eficiente, intensa e com o empenho de todos.”Isso não aconteceu no caminho percorrido até agora, mas só com esse processo se pode restaurar a credibilidade da política internacional. Só desta forma concreta será possível reduzir significativamente o dióxido de carbono e evitar a tempo males piores”, diz.
No sexto capítulo, fala sobre motivações espirituais para fiéis católicos e de outras religiões neste momento de crise climática. Comenta que os esforços para poluir menos, reduzir o consumismo desenfreado e consumir de forma sensata estão criando uma nova cultura. “O simples fato de mudar hábitos pessoais, familiares e comunitários alimenta a preocupação pelas responsabilidades não cumpridas pelos setores políticos e a indignação contra o desinteresse dos poderosos”, diz. Argumenta que, mesmo que esse comportamento não produza imediatamente um efeito relevante quantitativo, contribui para realizar grandes processos de transformação na sociedade.
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