A bióloga Débora Matioli Souza se equilibra 50 metros acima da imensidão das águas do rio Grande transformadas em energia pela hidrelétrica do Funil, sul de Minas Gerais, e revira uma rede lotada de mandis, um peixe que, assim como outras espécies, vive este mês os momentos finais da piracema, a migração para desova.
Ela está no alto de uma estrutura metálica que consegue chamar mais atenção do que o concreto da usina encravado no rio. Os peixes chegaram às mãos de Débora de elevador. Isso mesmo. Desde o final do ano passado eles vêm subindo o rio para a desova, mas para completar o percurso precisam superar um obstáculo gigantesco e antinatural: a barragem da hidrelétrica. É aí que entra o elevador, um sistema de transposição raro no Brasil e também no exterior, apesar de lá fora ser conhecido há mais tempo.
O elevador de peixes acrescentado à paisagem, entre os municípios de Lavras e Perdões, é de responsabilidade da Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig, com 49%) e da Companhia Vale do Rio Doce (51%). As duas empresas formam o consórcio que administra a hidrelétrica do Funil (oficialmente, usina Engenheiro José Mendes Júnior), com capacidade instalada de 180 megawatts, energia suficiente para uma cidade de 500 mil habitantes.
Inaugurada no final de 2002, a usina do Funil teve que cumprir a legislação ambiental estadual e apresentar uma solução para não interromper o trânsito dos peixes em período reprodutivo. A implantação de sistemas de transposição para peixes (STP) em barragens é uma exigência apenas em alguns estados. E em geral, quem define o tipo de sistema que será usado é o próprio empreendedor.
O elevador custou R$ 5 milhões e entrou em operação em outubro de 2003. No final do atual período de piracema, deve alcançar a marca de 270 toneladas de peixes transpostos. A operação costuma acontecer entre os meses de novembro e março, mas este ano o elevador está trabalhando mais do que o previsto. O monitoramento feito pelos biólogos evidenciou uma quantidade significativa de peixes ainda em regime de migração. Nessa fase, a caçamba que leva os peixes para a parte de cima da barragem faz cada viagem com cerca de 40 quilos de peixes, em sua maioria mandis. São os retardatários da piracema. “Em janeiro, as caçambas levavam até 800 quilos de peixes”, conta Débora.
A solução mais conhecida para a transposição de barragens pelos peixes são as escadas. Há cerca de 60 no país. Elevadores, são apenas dois: o da usina do Funil e o da hidrelétrica de Porto Primavera, no rio Paraná, em São Paulo, inaugurada em 1999. Em todo o mundo, existem mais de 13 mil STPs, quase todos concentrados nos países desenvolvidos, especialmente Japão, Estados Unidos, Noruega e Canadá.
O projeto pioneiro do gênero aconteceu em 1640, no rio Aar, em Berna, Suíça. Lá, foi usada uma escada para ajudar os peixes a transpor um obstáculo natural que não ultrapassava dois metros de altura. Em barragens artificiais, a primeira escada foi instalada em 1828, no rio Perth, Escócia. Em 1924, o elevador de peixes foi testado no rio White Salmon, nos Estados Unidos, e na década de 30 foi a vez dos europeus adotarem essa tecnologia, primeiro na Finlândia depois na Alemanha.
As escadas costumam ganhar a preferência nos empreendimentos. Segundo o engenheiro civil Sidney Lázaro Martins, que defendeu dissertação de mestrado na USP sobre a transposição de peixes, elas têm sobre os elevadores a vantagem de não vedar o acesso a nenhuma espécie. Aquelas que freqüentam o fundo do rio, como peixes de couro, costumam escapar da captura que leva ao elevador. “A ictiofauna brasileira é muito variada e a conhecemos pouco. No exterior, a eficácia do elevador é mais garantida, porque ele atende a um número bastante reduzido de espécies”, explica. Outra vantagem das escadas é que elas permitem aos peixes fazer o caminho de volta, ou seja, descer o rio. Este é um dos motivos para ter sido construído em Porto Primavera um sistema híbrido, com escada e elevador.
A bióloga Débora Matioli Souza garante que 95% das espécies corriqueiras na região já subiram de elevador a caminho da nascente para a piracema. Há 108 espécies catalogadas em todo o rio Grande, mas naquela área a presença constante é de 15 a 22 espécies (mandi amarelo, piracanjuba, curimba, piapara, dourado e outras).
Outro fator importante para decidir o tipo de transposição a ser feita é o desnível da barragem. O engenheiro Antônio Harley Anselmo, presidente do Consórcio da Hidrelétrica do Funil, afirma que a escolha do elevador levou em conta os 35 metros de altura da barragem e o comportamento das espécies presentes no rio Grande. “A escada não era a mais aconselhável pelos técnicos que fizeram viagens ao exterior para conhecerem os sistemas diferentes”, argumenta. Sidney Lázaro Martins reconhece que o elevador é indicado para desníveis superiores a 20 metros, mas defende as escadas mesmo nesses casos. Quando o desnível é muito grande, são construídos tanques de descanso para os peixes a cada 8 ou 10 metros de escada percorridos. Outro senão apontado pelo pesquisador é a quantidade de peixes que o elevador consegue transportar. “O espaço entre uma viagem e outra é grande e isso prejudica a subida dos peixes”, acrescenta, destacando ainda que o elevador não está em operação o tempo todo.
De acordo com o presidente do Consórcio da hidrelétrica do Funil, a tendência é mesmo de que o elevador funcione apenas no período da piracema, apesar de no ano passado ele ter sido operado ao longo dos outros meses. “Estávamos em experiência, mas sabemos que os peixes param de subir quando completam o período reprodutivo”, assinala Anselmo. Ele afirma ainda que o elevador não funciona à noite porque o monitoramento do comportamento das espécies mostrou que durante este período a presença de peixes é muito menor.
O elevador da hidrelétrica do Funil é formado por um canal de entrada, por onde os peixes são atraídos por um sistema que impõe velocidade e turbulência adequadas às águas; depois de confinados ali por um tempo, são empurrados até à caçamba do elevador (com capacidade para 8 mil litros e 12 toneladas) que os recolhe e sobe até uma altura de 50 metros, ultrapassando o limite da barragem. Um canal de fuga abre novamente as portas do rio Grande para que os peixes completem o ciclo da reprodução. Cada operação dura em média de 20 a 30 minutos. A quantidade de peixes e as espécies são monitoradas por biólogos da empresa local Bios Consultoria.
No alto do elevador, antes de abrir o canal de fuga, os biólogos analisam os peixes que foram transportados. Algumas espécies são marcadas com sensores de rastreamento, que servem para os pesquisadores avaliarem o comportamento e desenvolvimento dos peixes após a transposição. Junto com os sensores, são enviadas mensagens para quem pescá-los. Elas pedem que o pescador ligue para a usina e identifique a espécie e o local onde foi encontrada.
Os cuidados com os peixes pela Hidrelétrica do Funil não evitaram um acidente ecológico em janeiro do ano passado, durante a operação de manutenção de uma das três turbinas da usina. Onze toneladas de mandis ficaram confinados na máquina e morreram. O presidente do Consórcio disse que o cardume surpreendeu os técnicos. “Entraram na máquina cerca de 40 toneladas, mas não conseguimos salvas todos os peixes”. Depois do acidente, novas medidas de segurança foram adotadas para a manutenção da usina, entre elas o monitoramento do local por sonar, a medição do nível de oxigênio e da temperatura da água e a inspeção subaquática com mergulhadores.
* Roselena Nicolau é mineira de Belo Horizonte e jornalista. Foi repórter do Jornal do Brasil por 12 anos é correspondente da Agência Sebrae de Notícias.
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