Reportagens

Sob o sol de Roraima

A disputa pela reserva Raposa Serra do Sol opõe brancos, índios e índios-quase-brancos. O cacique líder da luta garante que só quer viver em paz com a natureza.

Renan Antunes de Oliveira ·
20 de maio de 2005 · 20 anos atrás

Existe algo de novo sob o sol de Roraima, por decreto presidencial. Em 15 de abril, Lula criou a reserva Raposa Serra do Sol, mais um pequeno país indígena dentro do Brasil. As terras foram batizadas assim porque começam no nascente, na maloca Raposa, e vão até o poente, na maloca Serra do Sol.

Só poderão viver lá dentro macuxis, wapixanas, taurepangs e ingaricós, com direito de trânsito para militares, funcionários da Funai, padres e ongs amigas. Em um ano a contar do decreto, devem sair todos os brancos hostis, garimpeiros ilegais, comerciantes de ouro, arrozeiros gaúchos, fazendeiros – fica só quem o índio deixar. A Funai é a zeladora.

Um dos batalhadores pela conquista da terra foi o cacique da maloca de Uiramutã, Orlando Pereira de Silva. Ele é um macuxi de 60 anos que se o abordasse numa calçada provavelmente você lhe daria uma esmola, tal sua aparência humilde e pobre.
Orlando e um conselho de caciques das aldeias dos grotões vão governar a reserva. A primeira providência deve ser um trabalho para evitar a cobiça dos barrados aos vastos campos, altas montanhas, rios e recursos minerais – cobiça que atinge proporções planetárias e está crescendo.

A proposta dos caciques é recuperar o estilo de vida de antes das três grandes levas de brancos das décadas de 40, 70 e 90, com respeito à natureza: não mais garimpo, fim das lavouras extensivas e limpeza dos rios contaminados por agrotóxicos. Tudo sem abrir mão da modernidade – todos lá entendem o valor de carros fora-de-estrada, televisão e internet.

Os brancos de Uiramutã, a cidade no epicentro da tormenta de protestos desatada pelo decreto, sustentam que os índios estão despreparados para dirigir uma área tão grande, quase do tamanho da Holanda. Acreditam, ou pelo menos espalham a noção de que eles são manobrados por ongs estrangeiras, padres e comunistas – na inflamada Roraima de 2005, a linguagem política ainda tem um tom de 1964.

Os velhos caciques comandam das aldeias, mas a face visível do movimento está na capital Boa Vista, no Conselho Indígena de Roraima, com gente de uma geração bem mais nova. Educada, politizada, com acesso à internet, que vê televisão por satélite, viaja pelo Brasil e pelo mundo. Com dinheiro para propaganda, feita por site e jornal, e apoio internacional. Resultado: qualquer soluço dos caciques é temido nas cidades e hostilizado na imprensa local, mas muito respeitado nas malocas, em Brasília e mundo afora.

Uma boa indicação de que os índios estão firmes no poder é a história de Orlando. Menino, era nobreza macuxi, filho e neto de caciques. Foi vendido pelo pai, cacique mas alcoólatra, para um garimpeiro branco chamado Sodré, a cuja família serviu como doméstico por oito anos, até fazer 16.

O patrão descuidou de sua educação, ele saiu da casa apenas sabendo assinar o nome. Quando pôde, Orlando fugiu da escravidão. Aprendeu a tocar sanfona, garimpar e beber cachaça. Virou gaiteiro animador de bailes nos mafuás dos grotões. Aos 20, estava graduado como sanfoneiro, garimpeiro e cachaceiro – um pouco mais e estaria nas calçadas pedindo esmolas.

Foi quando recebeu um chamado do avô, em sonhos. O velho falava da terra intocada, de águas limpas, de um mundo sem sujeira, com o índio feliz como antes da chegada dos brancos – coisas que a gente pensa que quem conta tá inventando.

Mais ou menos na mesma época do sonho, os comerciantes brancos de Uiramutã queriam trocar o pai dele, bebum demais, do cacicado da aldeia. Buscavam alguém tão dócil quanto, mas que eles também pudessem manobrar, para gerenciar os garimpos e fazendas na santa paz. Santa paz é como eles ainda hoje se referem “ao tempo em que havia harmonia entre índios e brancos”, antes da “discórdia provocada por padres, comunistas e ongs estrangeiras”.

Os caciques brancos escolheram o sanfoneiro cachaceiro e analfabeto para o cargo. Orlando virou “tuxaua” e “pajé”, cacique e curandeiro, aos 23 anos. Mas daquele momento em diante ele virou o fio. O primeiro ato do novo tuxaua foi levar a tribo para a outra margem do riacho que hoje divide Uiramutã entre brancos e os seus.

De lá para cá, e por 37 anos, Orlando lutou contra a ocupação branca das terras da aldeia. Recusou suborno, ignorou ameaças e enfrentou violência. Venceu a batalha nos gabinetes de Brasília, batendo políticos matreiros como o governador Ottomar Pinto e o ministro da Previdência, senador Romero Jucá, ocupantes da “casa grande” de Roraima.

No amanhecer chuvoso de 12 de maio, na sua maloca na maloca – maloca de casa e maloca no sentido de aldeia indígena – o tuxaua Orlando contou como conseguiu a proeza. Naquele dia estava de sandálias havaianas, tornozelos com algumas feridas, talvez complicações de diabetes. Vestia uma calça preta surrada, a fivela do cinto com um número metálico, 777. A camisa destoava do conjunto, de tão bem cuidada. Cor quase abacate, limpa, aparência de nova, mangas compridas. Seu cocar era um desbotado boné com o escudo do Flamengo.

O homem tem uma barba rala, o rosto enrugado, a pele morena, queimada pelo sol inclemente que faz acima da linha do Equador. Seus cabelos têm raros fios brancos. O aperto de mão dele é mole. Quando Orlando fala, cada frase parece ser a última, como se estivesse encerrando a conversa – mas ele sempre tem mais alguma coisa para dizer.

A casa? Barro nas paredes, telhado de palha, chão de terra batida, toalete do lado de fora. Seu único luxo são duas sanfonas. A primeira, dos tempos de garimpeiro, inutilizada. A outra funciona, é com ela que ele anima o pessoal – vive com a mulher, filhos, netos e amigos, na tradição comunal.

Sem nenhuma soberba, Orlando diz que a luta foi de todos os caciques de todas as etnias. No canto dele “todos sabiam que a terra era dos meus parentes antes do branco chegar”. Com gestos, apontando o rio, conta que era menino quando viu garimpeiros e comerciantes chegando: “No início eram amistosos, traziam presentes”. Com o tempo, tudo mudou: “Um dia a gente chegava num lugar, tinha cerca. Ia pra outro, tinha gado. Se a gente reclamava eles ficavam furiosos, diziam assim ‘Tá me chamando de ladrão?’, se faziam de ofendidos”.

Um fazendeiro pegava uma vaca da tribo, sem marca, marcava com ferro. Se um índio fosse reclamar era enxotado. “A única coisa que a gente podia dizer era ‘sim senhor’. Todo lado que a gente metia o pé tinha dono. Os brancos começaram a dizer que tudo era deles, nós é que tínhamos que pedir licença pra tudo”.

As coisas começaram a mudar na maloca Santa Cruz. Um fazendeiro branco cercou uma área e botou um portão. Orlando e os seus foram lá, derrubaram tudo. O fazendeiro veio com a polícia. Parecia que ia dar confronto. O tuxaua disse que naquela hora resolveu adotar uma postura tipo Gandhi, de não reagir à violência.

Não precisou se imolar. Tudo terminou bem quando um pequeno destacamento policial entrou na maloca e acabou cercado por 120 índios. Um militar pergunta, do alto da carroceria da camionete: “Quem é o tuxaua?”. Era o Orlando.

“Quem derrubou a cerca?”
Silêncio.
“Tá bom” – e o destacamento vai embora, para nunca mais voltar.

Orlando não lembra quando foi, mas sabe o resultado: “Dali pra frente a gente esteve sempre em grupo, organizados, conquistando espaços. Tomamos o que era nosso”.

Mas a verdadeira guerra pode estar apenas começando, porque o decreto fixou prazo de um ano para a saída dos brancos da reserva. Políticos, fazendeiros e comerciantes recém iniciaram sua mobilização contra a medida, com advogados na Justiça, lobistas nos bastidores do Congresso e jagunços nos grotões.

Parte importante da resistência tem cara de índio, mas alma de branco. Excelente combinação para confundir o marketing da causa indígena. São famílias que, em algum momento de sua história, trocaram a aldeia Uiramutã pela cidade Uiramutã. Lá integraram a Sodiur, Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima, financiada pelos brancos para dividir a comunidade.

A Sodiur combate Orlando e controla meia dúzia das 160 aldeias da reserva. Seu pessoal foi recrutado pelo prefeito de Paracaima, o arrozeiro gaúcho PC Quartiero, para fazer reféns agentes da Polícia Federal, logo do anúncio do decreto, episódio que deu ibope.

O objetivo da ação era mostrar ao mundo que índios, logo eles, os beneficiados, não apoiavam a criação da reserva. O Governo do Estado fez sua parte no show levando de helicóptero a maioria dos jornalistas da grande mídia para a “frente de batalha” – as fotos de índios pintados para guerra circularam, mensagem entregue, o pessoal da Sodiur foi desmobilizado.

Quando se fala em tirar os brancos e deixar só índios na reserva parece que a tarefa seria como relocar Campinas, Fortaleza ou Camaçari, coisa que teria alto impacto ambiental, social e econômico. Quem pensa assim não conhece Uiramutã e Pacaraima, as cidades Lula poupadas do decreto presidencial para garantir a presença do governo na região.

Uiramutã, quase centenária, de grande só tem o quartel e a prefeitura. Nenhuma farmácia. Seu maior negócio é um supermercado com faturamento mensal de 20 mil, e isso porque o dono compra ouro de garimpos ilegais. A limpeza pública é feita por urubus que varejam as ruas. A segurança está entregue a uma matilha de cães vadios que latem para qualquer forasteiro – todos correm pra janela para vem quem está chegando. Não tem livraria, nem restaurante. Nem calçamento.

Polícia, juiz, promotor e advogado? Ninguém lembra quando foi a última vez que pintaram. Cartório de registro de imóveis é bom não ter, porque papéis, em Roraima, valem tanto quanto o vento – depois da criação da reserva fazendeiros estão negociando entre si títulos de propriedade frios, de olho numa futura indenização pelo governo.

Uiramutã só tem um padeiro. E basta. É um ex-soldado que aprendeu o ofício nos seus quatro anos de Exército. Em dia bom vende 60 pãezinhos. Ele é o ex-marido de uma das filhas do cacique dos macuxis, moça que se mudou para a capital cansada da miséria.

As reuniões da Câmara de Vereadores são concorridas, até por falta de lazer. Todos os moradores vão lá assistir. Metade cabe na sala e a outra fica do lado de fora – é costume local oferecer café às galerias.

A família da prefeita Flora Mota é dona do pedaço. O pai dela cuida dos negócios da municipalidade quando ela não está presente – a prefeita mora na capital. O pai conhece pelo nome cada eleitor. Quando algum vereador ousa criticar a filha na Câmara, alguém corre para avisá-lo. Aí ele vai lá, toma a palavra, mesmo sem mandato, rebate tudo.

Os moradores gostam do buraco onde vivem, até porque a maioria é pobre e não tem para onde ir. Se alguém se dispusesse a relocar toda a população da cidade, seria mais fácil do que assentar alguma turma do MST raivoso. Meia dúzia de ônibus e alguns caminhões de mudança fariam o serviço – o problema seria para onde levá-la.

Paracaima, na fronteira com a Venezuela, é um pouquinho maior do que Uiramutã, mas apenas um camelódromo. Tem lá algumas ruas calçadas, mas sua zona urbana está espremida. Começa onde termina a reserva indígena São Marcos, e no maior caos: a porta de entrada é um conjunto de casebres, sucata e caminhões velhos, estes usados para contrabandear gasolina.

As vilas no interiorzão destas cidades, que alguns políticos locais defendem como sendo assentamentos importantes para a soberania nacional, sequer constam dos mapas. Gente que vive na beira daquelas estradas não sabe nem informar onde ficam.

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