Reportagens

Fino segredo piauiense

Praticamente inexplorado pelo turismo, o gigante Delta do Parnaíba, no Piauí, é um espetáculo que ainda não foi totalmente ofuscado pelas agressões ambientais.

Carolina Mourão ·
25 de maio de 2005 · 19 anos atrás

Visto de cima, o Delta do Parnaíba, localizado entre Piauí e Maranhão, forma um quebra-cabeças com mais de 70 ilhas, divididas por veredas de manguezais, igarapés, vegetação de restinga, campos e dunas que atingem até 40 metros de altura. Pelo delta, uma incalculável quantidade de água doce choca-se com o mar salgado em cinco artérias, formando um espetáculo só comparável ao do rio Nilo, no Egito, e o Mekong, no Vietnã. Mas o nosso delta é o único em mar aberto das Américas, e o mais preservado.

O santuário ecológico, vizinho aos lençóis maranhenses e azeitado pelas águas do rio Parnaíba, abriga mais de 60 espécies de mamíferos, entre eles a jaguatirica, a lontra, o raríssimo peixe-boi (estima-se que só restem 400 exemplares) e a onça, além de mais de 200 espécies de aves, como a garça azul, o gavião real, o tucano e o guará vermelho (foto abaixo).

Apenas a partir de 1996 a importância ambiental do Delta do Parnaíba chamou a atenção do Ministério do Meio Ambiente, dos governos estaduais, do Ibama e de outras instituições. Naquele ano, o delta foi transformado em Área de Proteção Ambiental (APA), categoria de unidade de conservação que não serve para proteger coisa alguma, e desde então os diversos ecossistemas vêm sendo objeto de esforços de preservação, seja pela implementação do Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC), seja em projetos de desenvolvimento sustentável na região. Em 2000, também foi criada a Reserva Extrativista do Delta do Rio Parnaíba, dentro da área da APA.

Tecnicamente, estariam restritos quaisquer tipos de caça, pesca ou desmatamento na região. Entretanto, as 4 mil famílias que dependem exclusivamente da exploração das riquezas do delta para se sustentar vivem num estado de miséria pulsante. Esgotos ribeirinhos ao longo do Parnaíba, assoreamento das margens e descuido das nascentes ameaçam veladamente o rio que parece mar. A segunda maior ilha do delta, a das Canárias, abriga roças de arroz feitas às margens dos igarapés, onde antes havia manguezais. As culturas de arroz são erosivas, levam ao assoreamento. As Canárias abrigam dunas, praias, lagoas, campos e matas. A pesca é a principal atividade econômica, e contribui com 80% da arrecadação dos municípios que cercam o delta. A agricultura extensiva e a extração de sal marinho completam a renda e também ameaçam o meio ambiente. O homem do delta explora ao máximo os recursos naturais, destruindo florestas, promovendo queimadas, criando gado e fazendo roças de arroz, milho, feijão.

O turismo ainda é improvisado. Mesmo sem investimentos relevantes, é fundamental para a economia local. Para chegar ao Porto das Barcas – ou dos Tatus -, de onde sai o barco do passeio ao delta, é preciso ir primeiro a Parnaíba, distante aproximadamente 340 km de Teresina. Uma aventura que começa na estrada. Já depois de Piripiri, duas pequenas construções caiadas e bem preservadas, das antigas missões, revelam a coragem das bandeiras no tempo em que tudo ali era inóspito. À beira da estrada, na altura do município de Campo Maior, surge um imenso monumento. É o local exato da sangrenta batalha do Jenipapo, que aconteceu em 13 de março de 1823. Luta desigual entre populares partidários da independência brasileira, e a resistência portuguesa, fortemente armada, que procurava evitá-la além do centro-sul do país. A batalha envolveu 2.500 piauienses e cearenses, sem adestramento militar e debaixo de um sol inclemente, no combate às tropas portuguesas. A adesão da província piauiense, pela geografia estratégica, encravada entre as províncias ocidentais e orientais do norte da América portuguesa, foi decisiva no processo emancipatório brasileiro. Dentro do município de Campo Maior, na rua da rodovia, as carnes de sol expostas em carcaças inteiras dão o tom das cores da batalha.

Parnaíba, cidade-base para visitar o delta, é um parágrafo à parte. Ganhou o nome do rio mais importante do estado e teve todo o seu desenvolvimento ligado ao comércio por vias fluviais. Dois grandes ciclos marcaram a história de ascensão e queda da economia da cidade, que à época desdenhava dos modos provincianos da capital. Em 1758, o português Domingos Dias da Silva impulsionou a produção da carne de charque na região. Imensos armazéns tiveram de ser construídos para abrigar a enorme produção que era exportada para diversos pontos do país, Espanha e Portugal. Este ciclo entrou em declínio quando o Rio Grande do Sul dominou a técnica e levou os produtores piauienses à bancarrota. Mais de um século depois, a cidade descobriu o potencial de suas palmeiras, a carnaúba. O pó extraído da planta foi matéria-prima da cera inglesa, febre nos salões aristocráticos de pisos hidráulicos, e depois, dos antigos discos long play. Sólidos casarões que hoje podem ser visitados foram erguidos pelos barões do ciclo da carnaúba e não se pode calcular o volume de dinheiro que circulou por lá até os anos 40, quando o comércio do pó da carnaúba entrou em decadência com a queda no preço pelo excesso de produção.

O Porto das Barcas é o ponto de partida do passeio. A saída ocorre uma vez por dia pela manhã, em dias de demanda. É só chegar, desse jeito. O turista pode pechinchar se tiver mais gente querendo, e pode escolher um passeio de gaiola, um barco artesanal de dois andares, que também pode ser fechado, particular. Há também o passeio de lancha, não muito indicado por causa do barulho do motor, que assusta a fauna. No caminho, mangues de todos os tipos. É do delta que sai a maior produção de caranguejo do Brasil. Sem poder esperar a natureza, que exige 8 anos para que o caranguejo atinja o tamanho adulto, a enorme demanda quase liquidou a espécie na região. Hoje a população de caranguejo está se restabelecendo, muito lentamente, graças à rejeição do mercado cearense – maior consumidor do crustáceo – aos menores exemplares, as chamadas “aranhas”. O caranguejo graúdo é todo enviado para Fortaleza. Do porto das Barcas saem, semanalmente, dois caminhões e uma caminhonete cheios deles rumo ao Ceará.

O delta do Parnaíba abriga nada menos que 2.700 km2 de manguezais. Os quatro tipos de mangues do delta são de uma enorme importância ambiental e social. Anualmente, cerca de 5 milhões de crustáceos são retirados da área para consumo e comercialização. Há um verdadeiro exército de catadores, transportadores, processadores de pescado e atravessadores no delta. Os mangues são responsáveis por mais de 80% do alimento que o homem captura do mar, tornando-se a principal fonte de renda e de biomassa protéica de alto valor nutricional, vinda de peixes, crustáceos e moluscos. Do ponto de vista ambiental, os mangues são ecossistemas de transição entre ambientes terrestres e marinhos, e abrigam espécies endêmicas que se associam a outros componentes vegetais e animais. As raízes expostas funcionam como filtro na retenção de sedimentos orgânicos. A mistura da água doce com a salgada é rica em minérios que alimentam berçários naturais, protegidos de correntes marítimas. Quando crescem um pouco mais, os animais migram para as áreas costeiras. Nesses períodos, a imensa quantidade de vida minúscula torna o mar visivelmente viscoso.

Fui visitar um dos mangues. Enfiei o pé na lama. Atolei até a coxa e quase perdi minha câmera fotográfica num desequilíbrio. Sem contar o ataque dos minúsculos, mas potentes, mosquitos. As picadas viram ferida. Por isso o homem de lama, como é conhecido o catador, se lambuza de propósito e fuma durante a cata, evitando os ataques. Trabalho duríssimo. Apesar da impressionante extensão de mangue do delta, a ameaça das salinas que ocupam essas áreas é uma realidade. Outra ameaça é o fechamento das áreas tradicionais de pesca para a implantação de campos petrolíferos.

Mas o delta sempre resistiu. Senti um alento ao conferir que quase tudo está intocado. Aí resolvi parar ali, no encontro das águas, onde se forma uma lagoa morna e imensa. Não havia ninguém. Banho de uma hora. De um lado, dava para ver as ondas do mar, baixinhas, de outro, o grande Parnaíba e muita areia branca. Era um daqueles dias de movimento fraco, em baixa estação. Voltei para o porto das barcas. Sem pressa, tomei um traçado – cachaça com refrigerante, conversei com uns caboclos. Fui-me embora. Coisa fina aquilo ali.

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