Chega ao Brasil em fevereiro de 2006, vindo de Cingapura rebocado pelo mar, o casco que servirá de base para uma nova plataforma da Petrobrás, a P-52. Enquanto isso, em Angra dos Reis, no litoral do estado do Rio, está sendo construído o deque com toda a parte operacional e de produção da plataforma. Quando o casco chegar, ele será acoplado à base.
Mas para que o imenso casco, com seus 14 mil metros quadrados, possa se aproximar do cais, vai ser preciso dragar no porto do estaleiro um canal de 1.000 metros de comprimento por 200 metros de largura, com uma profundidade de 11 metros. A obra, sob responsabilidade do estaleiro BrasFels, vai consumir quatro meses e deve remover 520 mil metros cúbicos de material do fundo da Baía de Ilha Grande. Todo esse entulho, segundo o projeto, vai ser descartado em dois locais: um dentro da própria baía (chamado de Área A), que vai receber 80% do material, e outro em alto mar, a 48 quilômetros de distância (Área B, ver mapa).
É esta a operação que vem tirando o sono de ambientalistas, pescadores e profissionais do turismo em Angra e na vizinha Paraty. O temor é de que o descarte do material dentro da baía provoque graves prejuízos à vida marinha. Com o despejo, será formada uma nuvem de poeira, a chamada pluma (no mapa, as manchas marrons), que se espalhará pela região prejudicando a entrada dos raios solares na água e conseqüentemente a produção de microalgas, base da cadeia alimentar marinha. Além disso, as duas áreas escolhidas são pontos de pesca de sardinha e camarão muito utilizados pelos pescadores de Angra e Paraty.
O dano, segundo o próprio Estudo de Impacto Ambiental (EIA) encomendado pela BrasFels, recairá também sobre os animais que vivem no solo marinho, que serão soterrados com o despejo. As fazendas marinhas que cultivam mariscos no entorno da Ilha Grande podem igualmente sofrer com a presença da pluma. Uma das características dos mariscos é que eles atuam como filtro das águas do mar. Mariscos, vieiras e coquiles são particularmente vulneráveis a qualquer alteração da qualidade da água. O prejuízo pode ser ainda maior se a produção de sementes de vieiras pelo Laboratório de Larvicultura do Instituto de Ecodesenvolvimento da Baía da Ilha Grande (IED-BIG) for afetada. O laboratório é o único do país a fornecer sementes em escala comercial.
Como se não bastasse, o EIA identificou um agravante na dragagem da baía. Na análise do leito a ser removido foram detectadas substâncias tóxicas cancerígenas que, se lançadas indiscriminadamente no mar, podem contaminar a água e ser absorvidas pelos peixes, chegando até o consumo humano. “A BrasFels afirma que vai separar o material contaminado e incinerá-lo em terra, mas quem garante que este processo será realizado de forma perfeita?”, questiona o engenheiro naval Tiago Lopes, do Programa de Engenharia Oceânica da COPPE, centro de excelência da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Além de conhecer muito bem a região, onde tem casa, o engenheiro também entende de plataformas. Ele estava a bordo da P-36 quando ela explodiu, em 2001 (foto). Tiago vê relação entre o que está acontecendo em Angra e o que ocorreu em alto-mar no trágico acidente que matou 11 pessoas e levou para o fundo a plataforma da Petrobrás. “Muitas vezes, a falta de atenção nos detalhes pode ter sérias conseqüências”, alerta.
A BrasFels defende-se com base no próprio EIA, que afirma que os impactos serão temporários e restritos à área de despejo. “Nosso projeto é tecnicamente sustentável e inatacável. Vamos atingir menos de 5% da área de pesca”, diz Filipe Rizzo, representante do estaleiro. Para a empresa, a discussão está sendo motivada por interesses eleitorais. “Temos certeza de que é uma questão política”, afirma Rizzo. Ele diz também que existe uma memória negativa na população por conta de dragagens anteriores.
De fato, ao longo dos últimos 15 anos a região sofreu com três dragagens desse tipo: uma para a construção do canal de navegação do porto de Angra e outras duas para permitir o acesso aos portos de Sepetiba e da Petrobrás (Terminal da Baía da Ilha Grande, TEBIG). Tentando entender quais serão os impactos da nova dragagem, o Sindicato dos Armadores de Pesca de Angra contratou o oceanógrafo Júlio Avelar para fazer uma análise técnica sobre o EIA. O estudo resultou em um parecer contrário ao descarte do material no interior da baía e favorável ao deslocamento da Área B para 10 km mais longe, em uma região de profundidade em torno dos 60 metros. Seria a Área C. “Os locais que eles escolheram para o descarte são justamente os de atividade pesqueira. A pluma gerada pelo despejo pode ser absorvida pelas guelras e asfixiar os peixes”, diz Avelar. Apesar do impacto previsto, o EIA não fala em nenhuma medida compensatória. Sugere apenas uma ação de comunicação social para esclarecer à população sobre a obra e um programa de monitoramento. “Ficamos surpresos com a ausência de medidas mitigadoras”, comenta Júlio.
A proposta de uma Área C virou uma unanimidade entre pescadores, ecologistas e empresários do turismo. Para Carlos Kazuo, dono de uma pousada na Ilha Grande, o descarte do material dentro da baía vai simplesmente inviabilizar o turismo subaquático. “A pluma vai ficar oscilando dentro d’água por seis meses e não é possível prever com precisão onde ela vai parar. No setor somos todos pelo descarte em mar aberto”, afirma Kazuo.
A decisão será tomada a partir de duas audiências públicas marcadas pelo Conselho Estadual de Controle Ambiental para os dias 11 e 12 de julho, respectivamente em Paraty e Angra dos Reis. As reuniões prometem ser polêmicas, já que o assunto virou uma panela de pressão depois que a BrasFels anunciou que irá transferir a construção da plataforma para Niterói, caso a licença não saia até a data prevista para o início da dragagem, em meados de agosto. “Não teremos outra alternativa”, afirma Rizzo. Como o projeto deve gerar 5 mil empregos diretos, a ameaça deixou os metalúrgicos assustados, e espera-se a maciça participação da categoria nas audiências. Segundo o engenheiro naval Tiago Lopes, a mobilização dos metalúrgicos faz parte de uma manobra do estaleiro. “Estão usando os empregados para tentar impor a dragagem de qualquer maneira”, diz.
Para o diretor da Cooperativa de Pesca de Angra, Júlio Magno, o ideal seria mesmo o terceiro ponto de descarte. “Estamos defendendo os nossos direitos. Muitos barcos da cooperativa são de pequeno porte e não têm condições de buscar os peixes em alto mar. O despejo dentro da baía é inviável”, diz Magno. O representante dos pescadores afirma ainda que o único empecilho para a adoção de outro ponto de descarte é financeiro. Segundo ele, a BrasFels não está disposta a arcar com os custos adicionais envolvidos na mudança. “Eles alegam que vão gastar 10 milhões para mudar o local de despejo. O valor é irrisório perto dos custos totais do projeto, de 2 bilhões de reais”, afirma. Rizzo rebate com o argumento de que o acréscimo inviabilizaria a obra. “O investimento é alto, mas isso não quer dizer que estamos com dinheiro sobrando. Todo o orçamento da obra já está comprometido”, diz.
O impacto gerado pelo descarte deve chegar também a Paraty. “Depois das dragagens da década de 1980, os pescadores disseram que peixes como a sardinha e a cavala simplesmente sumiram da região. Nossa experiência mostra que todas as dragagens na baía da Ilha Grande afetam Paraty. Estamos em um fundo de baía, uma região de sedimentação e um berçário natural para diversas espécies”, afirma o secretário de Meio Ambiente de Paraty, Sérgio Godoy Barbosa. “Temos dez operadoras de pesca submarina e elas têm como principal atrativo o mar calmo e transparente. Isso gera emprego para a cidade. Somos contra os dois pontos apresentados pela BrasFels. Precisamos de um descarte ainda mais longe da costa”, conclui.
O cenário da temerária empreitada está localizado dentro de um santuário ecológico guardado por diversas reservas ambientais, como a Área de Proteção Ambiental (APA) Cairuçu, em Paraty, e a Estação Ecológica de Tamoios, que protege uma grande região entre Angra e Paraty, além da Reserva Biológica da Praia do Sul, na Ilha Grande.
A Petrobrás vem acompanhando o caso á distância. Através de sua assessoria, declarou que o assunto vem sendo conduzido “de maneira apropriada” e que vai aguardar a audiência pública para se manifestar sobre eventuais mudanças no projeto.
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