Reportagens

Uma jovem atrevida

A bióloga Débora Thomaz, 21 anos, sacode a letargia oficial de Macapá para melhorar a vida de bichos e plantas num Parque que há 3 décadas vive na clandestinidade.

Manoel Francisco Brito ·
12 de agosto de 2005 · 19 anos atrás

Macapá, capital do Amapá, tem um segredo de fazer inveja a qualquer capital brasileira. Trata-se de um Parque Zôo Botânico com 56 hectares de extensão, 95% por cento deles de floresta ainda praticamente intocada onde convivem quatro ecossistemas diferentes da Amazônia – cerrado, mata de várzea, floresta de galeria e ressaca, um sistema alagado endêmico à região. Nos outros 5% do terreno, onde apesar da clara intervenção humana a mata ainda é exuberante, estão as instalações do Instituto Estadual de Pesquisas (IEPA) e um conjunto de jaulas que guardam raridades da fauna amazônica, como uma onça preta (foto) e um gato mourisco. Ele fica a 13 quilômetros do centro e foi fundado há 28 anos como Horto Florestal, numa época onde praticamente não havia grandes áreas desmatadas em Macapá. Hoje, é o único aglomerado de mato importante que resta na sua área urbana.

É uma pena que com tanta coisa para mostrar ao público e tanto objeto de estudo para oferecer a estudantes e cientistas, o Parque viva na mais completa clandestinidade. Ao longo das 3 últimas décadas, a prefeitura de Macapá nunca se dignou a enviar à Câmara de Vereadores o decreto de sua criação. Também não regularizou a sua situação fundiária. Sabe-se que a área que ele ocupa é pública. Mas é só. Não se tem noção sobre se ela é federal, estadual ou municipal. Tamanha informalidade só causa problemas. A prefeitura garante farta alimentação aos bichos e o salário dos seus 35 funcionários. O Parque, entretanto, vive sem orçamento e não pode captar dinheiro de outras fontes como fazem zoológicos de várias outras cidades. Seu equipamento para abrigar os animais está danificado, obsoleto e fora das especificações do Ibama. Sua malha de trilhas é pequena. Quem quiser palmilhar o terreno, precisa se aventurar pelo mato (foto). Levando-se em conta a sua beleza, até que não é uma má idéia.

De algumas das jaulas, os bichos fogem frequentemente. Duas cobras que repartiam uma piscina com um casal de jacarés coroa escafederam-se pela área do Parque. “Os filhotes de macaco-aranha escapam porque a porta da jaula está quebrada”, conta Clésio Moreira, chefe da zeladoria. Noutras jaulas, ficariam expostos à ação de vândalos. Foi o que aconteceu num período em que o Parque esteve aberto à visitação. Alguns animais foram roubados. Um peixe-boi foi morto. “A meninada enfiou pauzinho de picolé no ouvido dele e o bicho se foi”, diz Carlos dos Santos, outro funcionário. Incapaz de garantir a segurança de visitantes e bichos, o Parque há muito fechou suas portas ao público, uma situação que só serviu para exacerbar o seu caráter clandestino e condená-lo a virar uma espécie de segredo, até mesmo em Macapá.

Felizmente a coisa começou a mudar. A população da cidade continua sem poder freqüentá-lo. Mas de uns seis meses para cá, voltou a se interessar pelo seu futuro. Sua redescoberta coincidiu com a indicação de uma bióloga recém-formada de apenas 21 anos de idade – a quem os aparelhos nos dentes dão a aparência de 15 – para ser sua diretora. Seu nome é Débora Thomaz (foto) e ela não faz nenhum segredo sobre o que a qualificou para um cargo para o qual, no mínimo, lhe faltava experiência. “Essa cidade é pequena”, começa a explicar. “Aqui, todo mundo ou é parente ou amigo de alguém”. No seu caso, o parente importante era o pai, amigo do atual prefeito, o petista João Henrique. Com toda essa qualificação, ela tinha tudo para repetir as administrações anteriores e ir empurrando a situação com a barriga, com a disciplina de uma indicação política, colocada lá para justamente não criar nenhum problema. Fez justamente o contrário. Tão logo se sentou na cadeira de chefe, em março desse ano, imprimiu à sua gestão caráter eminentemente técnico e, pelo menos para os padrões locais, extremamente atrevida, acabou criando até alguns problemas políticos para a prefeitura.

Com a comida dos bichos garantida, dedicou-se primeiro a colocar em ordem a máquina do Parque. Faltava o básico, de computador a material de escritório. Os arquivos estavam em desordem e ninguém sabia exatamente qual era a situação legal da instituição. Pressionou a procuradoria do município atrás de uma resposta. Foi quando soube que, oficialmente, o Parque nunca tinha sido criado. Disparou uma dezena de memorandos para o secretário de meio ambiente pedindo equipamentos. Enquanto isso, reorganizou os arquivos e desengavetou um projeto para dar ao Parque estrutura condizente com seu acervo de fauna e flora. Ele envolvia um plano de recuperação de seus logradouros para reabri-lo ao público e a criação de estrutura capaz de atrair para lá atividades de pesquisa. Os funcionários do Parque, habituados à letargia oficial, estranharam um pouco a mudança no início. Mas encamparam logo os objetivos da nova chefe. “Não era para melhorar?”, pergunta Reni Dias, chefe da Divisão do Parque.

Mas o entusiasmo inicial de Thomaz foi paulatinamente se transformando em frustração. A procuradoria demorava a voltar com soluções para as questões legais. A secretaria parecia ignorar seus apelos. “Eu achava que bastava boa vontade para consertar isso aqui”, diz Débora. “Logo vi que precisava começar a gritar”. O auge de sua desesperança foi atingido em maio. O Parque se preparou para receber a visita da Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. “Achava que ali, naquela cerimônia, o município ia se comprometer de vez com a instituição”, conta. Enganou-se. Marina não apareceu. Mandou um representante que, no curtíssimo espaço de tempo em que esteve lá, só falou no Parque nacional do Tumucumaque, que fica no Norte do estado. Thomaz começou a gritar. O primeiro a ouvir seus berros foi o próprio prefeito, logo depois do evento ao qual a Ministra não foi. Ela lhe disse que se era para deixar a coisa como estava, seria melhor soltar os bichos e chamar o MST para ocupar o terreno. Mas não ficou só nisso.

Aumentou a freqüência dos memorandos oficiais e passou a mandar cópias diretamente para o prefeito. Chamou a imprensa para mostrar as condições da instituição. Aproveitou para pedir o auxílio da população e chegou a abrir as portas do parque por alguns dias para que as pessoas pudessem visitá-lo. O titular da secretaria de meio ambiente não agüentou o bombardeio e deixou o cargo em junho. Seu substituto, Manoel Osvanil Bacelar, o Nil Pisca, professor de geografia na Universidade Federal do Amapá, devolveu um mínimo de esperança a Thomaz na raça da burocracia governamental. A vida dos seus bichos e plantas melhorou. O Parque ganhou guardas armados para reprimir caçadores que agiam no seu terreno. As cutias e capivaras que andavam sumidas, com medo de levar bala, voltaram a freqüentá-lo. Há também uma promessa de enviar 120 mil reais à administração para recuperar logradouros e jaulas. A tarefa é urgente. Em algumas delas, a corrosão nas grades de ferro é tanta que em certos pontos exibem espessura digna de um arame. Outras, como a que guarda um exemplar de gavião-real (foto), estão prestes a desabar.

Na maioria dos abrigos falta vegetação, tanques para a auto-limpeza dos animais e pontos de fuga onde os bichos seriam capazes de se esconder. Alguns não podem nem ser limpos porque a falta de porteiras impede a entrada de funcionários para fazer o trabalho a salvo das garras e presas dos animais. Na área de quarentena do Parque, a escassez de abrigos obriga às vezes duas espécies diferentes a conviverem na mesma gaiola – um quati com um mico, por exemplo – ou a se comprimirem em espaços onde mal conseguem dar um passo, caso de um gato mourisco. “Tudo ainda é muito dificultoso”, dizia Thomaz, na última quinta-feira. “Mas estou contente com o rumo que as coisas estão tomando”. A prefeitura já começou a fazer os trabalhos de georeferenciamento do terreno do Parque, importante para definir a sua demarcação definitiva e regularização fundiária. Mas ainda falta o fundamental: o decreto de criação. Sem ele, não há como tirar de vez o Parque Zôo Botânico de Macapá de seu injusto anonimato.

Sua diretora acredita que agora a coisa vai. É provável, entretanto, que ela não consiga aproveitar ao máximo os louros de tanto berro e tanto trabalho. Thomaz, que desde os 16 anos vaga pelo Brasil para estudar sua verdadeira paixão de bióloga, as macrófitas (plantas aquáticas), percebeu nessa sua passagem pelo Parque a dimensão de uma frase que seu pai há muito repete nos seus ouvidos: “Macapá é pequena demais para você”. Parece ser mesmo. A cidade tem dificuldade de comportar uma moça ainda tão jovem, capaz de fazer tanto barulho e sonhar tão alto. O incômodo não deve durar muito tempo. Até o final do ano, ela quer estar no Paraná, para iniciar a sua pós-graduação.

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