Reportagens

A fresta da Amazônia

Não é qualquer um que passa pela BR-163, ainda mais se for ambientalista. Cauteloso, o Greenpeace percorreu a via para revelar uma floresta quase sem vida.

Andreia Fanzeres ·
18 de agosto de 2005 · 19 anos atrás

Eles não são malucos. Só parecem. Passam semanas, às vezes meses longe de casa em expedições que percorrem de grandes cidades aos cantos mais inóspitos para protestar pacificamente em defesa do meio ambiente. Pela água, pelo ar e, como foi o caso da última viagem, por terra batida e esburacada. Ativistas do Greenpeace superaram cada quilômetro do trecho mais cobiçado da BR-163, entre Santarém, no Pará, e a capital mato-grossense Cuiabá, durante 22 dias.

Conheceram e documentaram a estrada que corta a Amazônia pelo chão e pelo tronco e puderam constatar que na área de influência da rodovia, ou seja, na extensão de 100 quilômetros a partir de cada margem, 20% da floresta estão comprometidos no trecho sem pavimentação do Pará. Em Mato Grosso, onde o asfalto já chegou, esse percentual sobe para 60%.

Só a oportunidade de ver esses números em forma de floresta em pé ou derrubada já valeria a experiência. Mas em uma semana de convivência com a equipe deu para entender melhor as razões que faziam da expedição uma necessidade pessoal para os ativistas, institucional para o Greenpeace e nacional para os brasileiros que estão por fora das questões ambientais que estouram nas margens da BR. Ao longo da viagem deu também para compreender o que levou os ativistas a percorrer os 1.764 quilômetros da rodovia de um modo que não estão acostumados: sem chamar atenção. Ao menos eles tentaram. Quase conseguiram. Foram descobertos ao passar por Novo Progresso (PA) e Sinop (MT), mas escaparam graças aos minuciosos cuidados com organização e segurança, elementos que conferiram sucesso à expedição ambientalista numa área em que a lei é a do gatilho.

Antes de colocarem o pé na estrada para diagnosticar as condições ambientais nas áreas de influência da BR-163 e divulgarem seus protestos, os ativistas tiveram um treinamento digno de guerra. Estratégias para despistar eventuais seguidores, fuga rápida dos carros, procedimentos de navegação e comunicação com bases de apoio, monitoramento, e até algumas técnicas de defesa corporal. Fotógrafo, cinegrafista, jornalista, médica, advogado, voluntários, gente que conhece a Amazônia como a palma da mão e ativistas que atuam internacionalmente pelo Greenpeace formavam a equipe super preparada para enfrentar tempo bom ou tempo ruim na rodovia, que nesta época de seca é transitável no trecho de terra do lado paraense.

Acompanhados por um hidroavião pronto para dar qualquer suporte ao grupo, seis caminhonetes com tração nas quatro rodas saíram de Santarém no final de julho. Três delas totalmente blindadas, e os motoristas com coletes à prova de balas. A proteção não foi providenciada especialmente para a expedição. Tampouco ao longo da estrada era esperado se deparar com tiros contra os ativistas. Mas é aquela história: “Se temos, por que não usar?”. Felizmente, esses itens não foram testados, nem as três maletas de remédios que a médica do grupo carregava. “Um enjôo daqui, uma dorzinha dali, mas nenhum episódio grave”, constatou o bendito fruto entre os ativistas, a infectologista carioca Danyelle Souza, que tinha até microscópio para fazer diagnóstico rápido de malária, se fosse preciso.

Na estrada, as horas custam a passar. Por cerca de 700 quilômetros do trecho de terra entre Itaituba (PA) e a divisa com o Mato Grosso, avança-se muito lentamente. A poeira sobe fácil, pinta de vermelho a vegetação à beira da estrada (quando há floresta por perto) e os fios de luz, nos trechos em que acompanham a via. Também cega os motoristas da expedição, orientados através dos rádios sobre os cuidados logo à frente na estrada. “Atenção, caminhão no sentido contrário” e “Toras na pista” são avisos recorrentes entre o comboio.

Centenas de quilômetros rodados sem que cruzar com nenhuma cidade. E aí, a regra é improvisar. “Temos aqui no carro ‘kit matinho’ e tudo”, conta David Monteiro (foto), o “Madalena”, voluntário do Greenpeace de Porto Alegre. Mada, com mais de um metro e noventa de altura, sente-se pequeno dentro da enorme caminhonete que dirige, mas já está acostumado. Com apenas 23 anos, participou de outras expedições do Greenpeace no volante, como a que percorreu a costa brasileira levando informações sobre energia renovável, no ano passado. “Foram 11 mil quilômetros em um mês de viagem”, diz.

Para quem já circulou tanto pelas estradas do país, é de impressionar ver Mada descrevendo o estado da estrada no Pará. “Perto da Serra do Cachimbo, havia verdadeiros cânions, buracos em que a caminhonete entrava inteira”. Em outros momentos, a vegetação fazia sombra e aí as crateras no chão ficavam camufladas. Isso sem falar nas incontáveis pontes de madeira pelas quais tiveram que passar. “Às vezes a gente precisava sair do carro e rezar para ele conseguir chegar ao outro lado”, conta Danyelle.

Conforme Mato Grosso se aproxima, as margens da rodovia ficam mais largas. Os sinais de exploração madeireira e avanço da fronteira agrícola também se tornam mais claros. Ao passarem rapidamente por Novo Progresso (PA), os ativistas do Greenpeace constatam a paralisação praticamente total das madeireiras, decorrentes das novas exigências do Ibama para a concessão das Autorizações para Transporte de Produtos Florestais (ATPFs). Mas, em Guarantã do Norte (MT), primeira cidade depois da divisa estadual, isso nem de longe intimida a retirada ilegal de madeira. “Os caminhões carregados circulam por lá à luz do dia. Isso só acontece quando a situação está bastante favorável”, diz Marcelo Marquesini, engenheiro florestal do Greenpeace. O intenso movimento é preocupante. “Na área da divisa, entre Castelo dos Sonhos e Guarantã do Norte, não há floresta densa, só uma mancha de Cerrado. Isso quer dizer que os caminhões devem estar tirando madeira de mais longe”, completa. Segundo ele, a madeira vem de duas áreas protegidas, o Parque Estadual do Cristalino, a oeste da BR, e a área indígena Pakaré, a leste.

A partir de Guarantã do Norte o asfalto recomeça, depois de interrompido cerca de 900 quilômetros antes. Mas, como se vê, isso não é indício de que existe presença do governo no local. Ou de que o governo se importe. Ao longo da estrada — que à exceção de um pequeno monumento que marca a metade do caminho entre Santarém e Cuiabá sequer tem placas indicando que se trata da BR-163 — outdoors e frases de caminhão dão pistas de que, definitivamente, o Greenpeace passa por terras onde não é bem-vindo. “Eu amo a BR-163. Fora ongs”, “Trans-gene”, “BR-163, a salvação da lavoura” e outras parecidas reforçam a idéia de que a expedição poderia não acontecer conforme o planejado se os carros tivessem a logomarca do Greenpeace ou se os ativistas não tivessem cuidados em não fazer qualquer referência à viagem em público.

E, pela lógica de um assentado do Pará que vive na beira da rodovia, é possível identificar um dos motivos. “Existem 26 ongs que estão impedindo o asfaltamento da BR”, diz ele, com uma firmeza numérica de surpreender. “A destruição da floresta já está aqui entre nós. A situação só está desse jeito justamente porque sem asfalto nem o Ibama consegue chegar”, conta.

Com asfalto, a viagem acelera. Em lugar das pastagens e dos rebanhos encontrados até Guarantã do Norte, seguindo para Sinop, a maior cidade do norte do Mato Grosso, o que se vê é soja. Soja a perder de vista. Apesar de a área ainda ser considerada Amazônia Legal, da estrada só resistem tufos de mata. A atividade madeireira chegou ali há cerca de 30 anos e já retirou muitas árvores valiosas. No entanto, ainda não esgotou o potencial da área. As clareiras nos escassos fragmentos de mata, as toras empilhadas e o movimento de caminhões apesar da crise reverberada a partir da Operação Curupira indicam que ainda falta para Sinop declinar. Tanto que o pólo dali é ainda considerado um dos mais importantes da região e, por estar às margens da BR-163, é orgulhosamente co-responsável pela extração de 28% da madeira produzida na Amazônia, de acordo com números de 2004.

Não é difícil notar que as áreas de pasto estão desgastadas. O gado foi transferido para o extremo norte do estado, sendo que alguns rebanhos já começaram a cruzar a divisa com o Pará. A soja tomou o lugar do pasto, que um dia foi floresta, o que rendeu o comentário sincero do ativista amazonense do Greenpeace Ribamar Ferreira da Silva que, antes de entrar para a organização, ganhava a vida navegando pelos rios de seu estado, levando toras de madeira ou turistas. “Eu nunca vi tanto campo na minha vida”. Sorriso (MT), cidade seguinte a Sinop, traz, no outdoor de entrada, a explicação de tanta soja e de tantos silos na beira da BR-163. “Sorriso, o maior pólo agroindustrial do norte do Mato Grosso”. Seja bem-vindo.

Os campos de soja não cessam até bem próximo a Cuiabá, com a diferença de que, a partir da cidade de Nova Mutum, não é mais a Amazônia que dá lugar às plantações. É o Cerrado mesmo. Na beira da estrada, no entanto, ainda dá para ver algumas árvores típicas, mas em chamas. O fogo, que acompanhou longe da rodovia toda expedição, na altura da capital mato-grossense chega perto do asfalto esburacado pela passagem pesada de caminhões lotados de madeira ou de grãos. E a fumaça, que vem de todo estado, torna o ar ainda mais seco e poluído.

Mesmo com o ar desse jeito e a umidade relativa abaixo dos 20% em Cuiabá, ao chegar a seu destino o Greenpeace achou por bem abrir o jogo para a população. Organizou uma exposição de fotos em praça pública sobre a viagem recém-concluída e espera sensibilizar os mato-grossenses sobre o que estão perdendo em nome do que o governador Blairo Maggi chama de progresso.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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