Alívio na Amazônia. A chuva começou a cair na cabeceira dos rios, que vêm, aos poucos, recuperando seu volume original. Com a situação amenizada, a tendência vai ser virar essa página da história da região amazônica. Impossível. O estrago já foi feito. E a floresta tende a continuar sentido os impactos da seca que alterou a rotina de ribeirinhos, plantas e animais – mesmo no molhado.
“Locais de reprodução estão sendo perdidos. As aves chegam para se reproduzir e não conseguem ou perdem os filhotes. Parte da exuberância da fauna associada a esses ambientes aquáticos, principalmente de aves, vai sumir”, afirma Renato Cintra, doutor em zoologia, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Durante o ápice da seca, tradicionais refúgios de animais, como os lagos Piranha e Cururu, na região de Manacapuru (AM), ficaram secos. Na vazante, ondas de peixes mortos cobriram as praias, servindo de alimento para urubus e outros carniceiros. A primeira conseqüência foi a contaminação da água. “A superpopulação de peixes, aliada a pouca água, sol quente e falta de oxigênio, provoca a mortandade. Sobram água contaminada e o mau cheiro”, descreve o chefe-substituto do Núcleo de Recursos Pesqueiros do Ibama-AM, Leonardo Maeda. Espécies de branquinhas, aruanãs, bodós, piranhas e traíras, peixes que se reproduzem nos lagos, foram as mais afetadas.
Se essa seca beneficiou alguém, foi à pesca. Mesmo assim em curtíssimo prazo. Nesse caso, apesar da chuva, o pior ainda pode estar por vir. “Com a descida da água, os peixes são obrigados a sair dos esconderijos onde se protegiam dos pescadores”, explica Maeda. Com a maioria dos peixes condenados, restou ao Ibama permitir a pesca em áreas antes restritas. Tambaquis com menos de 55 centímetros e pirarucus, protegidos pela lei, foram pegos antes de virar carniça. “É melhor capturar do que deixar morrer e apodrecer”, defende Maeda. A medida resolve um problema atual, mas cria escassez no futuro. Os efeitos da morte de milhares de peixes e da pesca precoce serão sentidos pela população do Amazonas no próximo ano, com o aumento nos preços e dificuldades para encontrar algumas espécies.
Futuro comprometido
Na avaliação de Cintra, a seca pode causar também a extinção local temporária ou mesmo permanente de outros organismos aquáticos, como plantas, larvas e caramujos, que estão na base da cadeia alimentar, e, conseqüentemente, de animais maiores que dependem deles para sobreviver. Jacarés, antas e onças, também dependem dos lagos e foram obrigados a buscar alimentos em terra firme.
As aves devem migrar em busca de lugar melhor para se alimentar e reproduzir. São cerca de 400 espécies nas áreas de várzea da Amazônia. Um exemplo é o maçarico. Entre 15 e 20 espécies desta ave fogem todos os anos do inverno no hemisfério norte para se alimentar de vermes que encontram no lodo de lagos da Amazônia. Com tudo seco, provavelmente ficaram sem ter o que comer.
Garças, jaburus e cabeças-secas também são espécies que dependem da concentração de peixes nos lagos para se alimentar. “Não sabemos para onde vai a população dessas aves migratórias”, diz Cintra. Como prováveis destinos, o pesquisador imagina que as aves sigam para o Pantanal mato-grossense, os lhanos venezuelanos ou os cerrados de Roraima, onde a estiagem só começa em novembro.
Os pássaros que ficarem terão problemas para se reproduzir na Amazônia. Biguás e garças fazem ninhos em árvores no meio dos lagos, o que dificulta o acesso de cobras, lagartos e jaguatiricas. Com a seca, os predadores puderam chegar facilmente aos lugares onde estão ovos e filhotes. Mesmo as gaivotas, que preferem a areia para fazer os ninhos, foram afetadas. Além de peixes para alimentar os filhotes, elas carregam no bico água para umedecer os ninhos. Assim, evitam que os ovos sejam cozidos pelo calor. A seca obrigou os pais a buscar alimento e água mais longe, e deixar os ninhos desprotegidos por mais tempo.
Para tentar entender o que pode ter acontecido na Amazônia, Renato Cintra lembra de estudos feitos ao longo de 30 anos nos ambientes alagados da Floresta de Everglades, na Flórida (EUA). Em época de seca intensa, a ação predatória de cobras aumentou entre 10% e 20% e a de mamíferos 20%.
A vazante abre caminho também para outro grande predador, o homem. A velocidade de descida do nível da água pegou peixes-bois de surpresa, que acabam presos em lagos quase secos. De acordo com a veterinária Branca Tressoldi, do Núcleo de Fauna do Ibama-AM, este ano a situação se agravou. “Não deu tempo de eles fugirem para lugares mais fundos. Até os maiores lagos secaram”, lamenta a veterinária.
Em duas missões realizadas no interior do Amazonas nos últimos meses, foram encontrados 150 peixes-bois mortos. Onze filhotes órfãos foram resgatados. O número ainda é inferior ao da seca de 1997, quando 643 animais foram mortos, mesmo assim é preocupante, na avaliação da veterinária, cogitando que as informações de 2005 podem estar subestimadas. “Vamos ter uma idéia melhor da situação só em 2006”, afirma.
O impacto da caça é relevante principalmente devido à lenta reprodutividade da espécie. O peixe-boi demora dez anos para atingir a idade adulta e, após a gestação de 13 meses, a fêmea só tem um filhote. Depois disso, ainda existe um período de amamentação de dois anos. Ou seja, filhote só a cada quatro anos.
Sem previsões
Cintra não arrisca uma previsão sobre quando a fauna dos lagos atingidos pela seca vai voltar ao normal. Segundo o zoólogo, não existem estudos a longo prazo na Amazônia para saber os efeitos de uma vazante tão rigorosa. O pesquisador diz que em Everglades, por exemplo, ao contrário do que se esperava, a população de aves aumentou depois da seca. Não se sabe ao certo porque, mas Cintra acha que pode ter sido devido a uma maior intensidade reprodutiva somada à colonização de indivíduos de outras regiões, que encontraram caminho livre para ocupar novas áreas.
A morte de animais compromete a floresta, já que muitos são polinizadores ou dispersores de sementes. Esse é o caso das cotias, que enterram frutos das árvores. Para a flora, estima-se que o crescimento da vegetação vai ser reduzido. José Francisco Gonçalves, doutor em fisiologia e bioquímica vegetal do Inpa, explica que, para se adaptar a uma realidade mais seca, as plantas evitam perder muita umidade para o ambiente. Com isso, elas deixam de assimilar carbono e reduzem a capacidade de acumular biomassa.
Para Renato Cintra, é preciso tomar providências para amenizar os problemas da vazante deste ano e conhecer melhore os efeitos das secas sobre a floresta. Para ele, vai ser necessário aumentar o período de defeso para garantir a recuperação dos estoques pesqueiros. Ele defende também a criação de um programa de monitoramento, dentro e fora de áreas protegidas para obtenção de informações de longo prazo, com a ajuda das comunidades.
“É preciso lembrar se queremos manter a vocação da Amazônia, que é uma reserva florestal do planeta”, afirma Cintra. “Em todo o mundo, a presença humana com a falta de planejamento resultou na desertificação, com migração da população humana para outros lugares”.
* Vandré Fonseca é jornalista formado em São Paulo, há oito anos vivendo na Amazônia. Após sete anos em Roraima, trabalhando para a TV Roraima e jornais de movimentos populares, mudou-se para Manaus. Atualmente, é repórter da TV Amazonas.
Leia também
Soluções baseadas em nossa natureza
Não adianta fazer yoga e não se importar com o mundo que está queimando →
COP da Desertificação avança em financiamento, mas não consegue mecanismo contra secas
Reunião não teve acordo por arcabouço global e vinculante de medidas contra secas; participação de indígenas e financiamento bilionário a 80 países vulneráveis a secas foram aprovados →
Refinaria da Petrobras funciona há 40 dias sem licença para operação comercial
Inea diz que usina de processamento de gás natural (UPGN) no antigo Comperj ainda se encontra na fase de pré-operação, diferentemente do que anunciou a empresa →