O principal motivo das alterações genéticas foi a escassez de alimento. Habituadas, em terra, a comer pequenos mamíferos como ratos e gambás, as jararacas se viram obrigadas a buscar outras dietas depois que o alimento se extinguiu, em sua pequena floresta ilhada em alto-mar. O mais interessante é que, partindo do mesmo ponto e da mesma limitação, as duas espécies tornaram-se diferentes também entre si.
Mudança de cardápio
Não à toa, a jararaca ilhoa é uma “serpente que tem deixado os herpetólogos perplexos”, como diz o livro, editado por Luiz Felipe Heide Aranha Moura, da ong Ama-Brasil. Ainda há muito o que estudar sobre elas, principalmente em relação à reprodução, que inclui estratégias como a partenogênese (por divisão de cromossomas, sem a participação do macho) e a presença de órgãos copulatórios na fêmeas. E, apesar da superpopulação, entender por que o número de cobras vem diminuindo em Queimada Grande nas últimas décadas.
Afinal, como afirma o livro, “a presença de jararacas é um dos fatores importantes na preservação da ilha, pelo temor que despertam nos homens”. Para não depender só delas, e preservar também a rica fauna das águas do entorno, a ong Conservação Internacional está em campanha para fazer da ilha de Queimada Grande um Parque Nacional Marinho.
Debaixo d’água, 150 espécies de peixes, também endêmicos — como a enguia de jardim — ou ameaçados — como o peixe-borboleta, o peixe-néon e o cação-lixa. E a ilustre visita de vários mamíferos marinhos, como a baleia-de-bryde, o golfinho-pintado-do-atlântico e a orca. Para coroar tamanha diversidade, abrigam-se em Alcatrazes todas as cinco espécies de tartarugas marinhas brasileiras, entre elas a tartaruga-verde, que, além dali e de Queimada Grande, só faz ninhos em Trindade, Atol das Rocas e Fernando de Noronha.
Guerra nos bastidores
Na década de 70, a Marinha escolheu um costão rochoso na ilha de Alcatrazes como alvo para seus treinamentos de tiro. Como na época não existia a obrigatoriedade de estudos de impacto ambiental, e o arquipélago era pouco conhecido pelos biólogos e conservacionistas, os bombardeios seguiram tranqüilamente.
Segundo Fausto Pires de Campos, coordenador do Projeto Alcatrazes e um dos editores científicos do livro, as atividades chegaram a ser mensais nos anos 80. Hoje acontecem, em média, a cada oito meses, mas os marinheiros promovem queimadas para espantar as jararacas e abrem trilhas na mata para pintar os alvos. Além do fogo intencional, o impacto dos tiros provoca faíscas que podem resultar em incêndios. “É um crime”, resume Campos.
Em 1991, entidades ambientalistas entraram com uma ação civil pública contra os bombardeios, alegando que, sem estudo de impacto ambiental, eles não poderiam prosseguir. No ano seguinte, a Justiça concedeu liminar suspendendo a atividade, mas ela foi derrubada pela Marinha em 1994.
O caso ficou parado por cerca de dez anos, até que em outubro de 2004 um cinegrafista registrou um incêndio provocado pelos tiros em Alcatrazes. A imagem foi parar no Jornal Nacional e o Ibama foi chamado às falas. Decidiu multar a Marinha em pouco mais de 1 milhão de reais, e embargou os treinamentos. Decisão que vale até hoje.
O oficial responsável pelas atividades em Alcatraz, do 8° Comando Naval de São Paulo, estava viajando e por isso não pôde responder a O Eco. Mas na apresentação de Serpentes Ilhoas, o vice-almirante Marcélio Castro de Carmo Pereira afirma que a Marinha “utiliza-se de porção pequena” de Alcatraz, e mesmo assim “de forma sustentável e em harmonia com as limitações ecológicas”.
Fausto Pires de Campos contesta, com uma pergunta: “Como é que uma atividade cujo propósito é destruir pode ser inofensiva para o meio ambiente?”. E reforça a necessidade do estudo ambiental com um exemplo concreto: a recém-descoberta rã-de-Alcatrazes, que só existe num único córrego da região conhecida como Saco do Funil, vive a 100 metros da área de bombardeios.
Em posição privilegiada para analisar o caso está o almirante Ibsen Gusmão Câmara, notório conservacionista com uma vida de serviços prestados à Marinha. Ele torce por uma saída negociada. “Não vejo que estrago maior esses exercícios possam causar. Primeiro porque são esporádicos. Depois porque são feitos sem carga explosiva. Por fim, porque acontecem num costão rochoso, sem vegetação. Ocasionalmente, pode ocorrer um incêndio, mas a Marinha precisa de um lugar para fazer esse treinamento”, defende.
Ele lembra que, antes de Alcatrazes, os exercícios eram feitos em parceria com a Marinha americana nas bases de Vieques, em Porto Rico. Mas além de serem muito dispendiosas, lá sim as manobras causavam grandes estragos ambientais. Muito mais por causa dos poderosos armamentos americanos, entre eles os nucleares, do que dos nossos pobres tiros, é claro. Alcatrazes foi a melhor solução encontrada pela Marinha por se localizar perto do Rio de Janeiro, onde está a maioria dos navios. “Concordo que deve haver uma reavaliação do impacto, mas vejo que há uma certa má vontade dos ambientalistas com a Marinha. Vá lá que os tiros assustem as aves e provoquem revoadas, mas não deve haver um prejuízo muito maior”, conclui.
Assim se espera. Afinal, a segurança nacional não pode negar defesa a um pedaço de Brasil tão raro, rico e frágil.
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