Reportagens

O quitrídeo chegou

Cientistas brasileiros detectam em Minas Gerais o fungo que tem destruído populações de anfíbios no mundo. Mas, por aqui, ainda não há motivo de alarde.

Andreia Fanzeres ·
6 de janeiro de 2006 · 18 anos atrás

Girinos têm dentes. Se isso é novidade para você, vai se surpreender ainda mais quando souber que, antes dessas minúsculas estruturas desaparecerem com o crescimento dos anfíbios, os dentinhos podem ser alvos de um fungo que vem assustando herpetologistas do mundo todo.

O nome dele é quitrídeo (Batrachochytrium dendrobatidis) e tem sido considerado uma das causas do declínio de populações de sapos, rãs e pererecas em diversas partes do planeta. Embora pouco se saiba sobre a origem e a transmissão desse fungo, ele já foi motivo de uma reportagem alarmista da revista National Geographic de janeiro, que incluiu a costa brasileira como uma das áreas onde os anfíbios estão mais ameaçados.

Mas calma. Segundo o biólogo Ronaldo Fernandes, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, os estudos sobre redução do número de anfíbios são muito questionados porque trazem conceitos um tanto quanto exagerados. “Por aqui, não sabemos se esse fungo é danoso como dizem”, considera. Em números concretos, até agora, apenas um caso de contaminação por quitrídeo foi registrado no Brasil, e é tão recente que a descoberta ainda está para ser publicada no mês que vem.

Um dos autores da pesquisa brasileira sobre os quitrídeos é o biólogo Luis Felipe Toledo, da Universidade Estadual Paulista (Unesp-Rio Claro). Ele concorda que não há mesmo razão para desespero em relação à disseminação desse fungo nos anfíbios brasileiros. Não há conhecimento suficiente para considerá-lo uma verdadeira ameaça, como é traçado no exterior. “A literatura internacional já mostrou que o fungo foi capaz de exterminar populações inteiras da América Central em dois ou três anos. Mas existem bichos por aqui convivendo há cinco anos com o quitrídeo, o que nos faz acreditar que são mais resistentes”, diz.

Toledo explica que os quitrídeos podem atacar girinos nas partes do corpo onde há queratina, como os dentes. Mas não existem provas de que o fungo prejudique os animais nessa fase da vida. Em sapos adultos, a conversa é outra. “Nesse caso, o fungo ataca a pele e os animais geralmente morrem muito rápido”, informa Toledo. “Por se tratar de um órgão extremamente fino e importante, responsável por funções vitais como a respiração, qualquer interferência na pele dos anfíbios pode ser muito prejudicial”, diz Fernandes.

No Brasil, a preocupação com o fungo quitrídeo foi oficialmente inaugurada em 2003, numa reunião, em Itatiaia (RJ), da Rede de Análises de Anfíbios Neotropicais Ameaçados (Rana) – grupo de estudos que busca as causas do declínio de anfíbios nas Américas. No ano seguinte, durante o Congresso Brasileiro de Herpetologia, em Curitiba, a Rana ofereceu um curso de identificação de quitrídeos. Foi a partir daí que Toledo começou a se interessar pelo assunto.

Com outros pesquisadores, ele pôs-se a procurar o quitrídeo nas áreas de serra, já que a literatura internacional aponta que é mais provável encontrá-lo em regiões úmidas e de temperaturas amenas. Escolheram a serra da Mantiqueira e, no município mineiro de Camanducaia, selecionaram girinos da espécie rã-de-corredeira (Hylodes magalhaesi) que apresentavam deformidades na boca. Testes de DNA comprovaram que elas eram provocadas pelo quitrídeo. Bingo! Mas as certezas acabam por aí. “Ele pode estar mais distribuído do que a gente pensa”, lembra o biólogo. Além dessa primeira descoberta nos girinos, Toledo diz que o fungo já foi encontrado em outras cinco rãs no país, mas esses casos ainda não foram oficialmente registrados.

Hipóteses

Existem mais perguntas do que respostas quando se fala nos quitrídeos no mundo, que dirá no Brasil. Como o fungo foi identificado na água, suspeita-se que ela seja um meio de transmissão. O ar também não é descartado como veículo de contágio. “Os herpetólogos ficam andando de um brejo para outro com as mesmas botas e podem estar espalhando o fungo”, alerta Toledo. Se ele for realmente perigoso, os pesquisadores deverão tomar mais cuidado.

Com base na literatura internacional sobre o tema, a bióloga cearense Diva Borges-Nojosa conta que os quitrídeos podem atacar o esqueleto dos girinos, que ficam debilitados, tortos, com deformação nos membros. “Ou eles morrem por inanição ou são facilmente predados”, diz.

Para Toledo, o quitrídeo pode ter chegado ao Brasil vindo dos Estados Unidos, pois desde a década de 1930 importamos rãs-touros, cuja carne é bastante apreciada nos restaurantes. “Alguns bichos fogem dos ranários para a natureza, o que tornou esse tipo de rã o único anfíbio invasor no Brasil”, diz o biólogo. Segundo Toledo, a rã-touro pode ser encontrada em matas do Rio Grande do Sul a São Paulo. Embora não haja registros do fungo nessas rãs em território nacional, a hipótese é válida porque no Uruguai o quitrídeo foi identificado nelas.

“Parece que esse fungo está vindo do hemisfério Norte e, aos poucos, vem se alastrando pela América do Sul”, estima Diva. Ela diz que o quitrídeo já causou grandes prejuízos a populações de anfíbios na América do Norte, América Central e Austrália e, recentemente, também foi localizado na Europa e na África. “Por causa disso, aqui no Brasil estamos todos de sobreaviso”.

Mas todo o cuidado é pouco com interpretações precipitadas. De acordo com Magno Segalla, presidente da Sociedade Brasileira de Herpetologia, não existe nada conclusivo sobre esse fenômeno mundial de declínio de anfíbios, especialmente os que são considerados “misteriosos” por ocorrerem em áreas protegidas. “Existem flutuações naturais de anfíbios em determinados períodos, que são motivadas por mudanças no regime de chuvas, temperatura e outros fatores. Depois de um tempo, a população se recupera”, explica. Para ele, o problema é afirmar que houve um declínio associado aos quitrídeos e, em seguida, constatar que os animais voltaram.

A dúvida não significa que os animais estão a salvo, principalmente porque o Brasil tem um motivo de peso para se preocupar com os anfíbios. “Independentemente desse fungo, o maior problema é a perda de hábitat, que ameaça espécies que ainda não foram descobertas”, diz Segalla. Resolver essa questão está fora do escopo dos herpetologistas. O que eles prometem é prosseguir nas pesquisas e convocar mais reuniões para discutir os quitrídeos no Brasil. Até lá, sem alarde.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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