É primavera na Eslovênia, que tem mais da metade do território coberto por bosques e florestas e estampa na bandeira a paixão pelas suas montanhas. Principalmente o monte Triglav, o maior do país com 2.864 metros de altitude, próximo à fronteira com a Áustria e a Itália e formado por três picos. O nome significa três cabeças. “Esloveno que é esloveno, tem que subir o Triglav pelo menos uma vez na vida”, afirma o alpinista Gregor Kresal, um dos mais respeitados do país.
Com cinco anos de idade, o empresário Branko Bolhar já tinha se aventurado com a família nas montanhas mais íngremes e perigosas da Eslovênia. “Somos criados assim. Para viver nas montanhas”, explica. Sua neta, Nina, foi iniciada com apenas dois anos em uma das tantas trilhas que levam ao cume.
Neste país, o turismo nas montanhas cresce na mesma proporção que os clubes de montanhismo. Atualmente, existem 247 associações e mais de 60 mil membros registrados. “Por conta da organização desses clubes, hoje, é difícil encontrar um caminho que não esteja sinalizado ou mapeado”, diz Gregor. Em mais de 30 visitas ao Triglav ele já rastreou a maioria dos sete mil quilômetros de atalhos – sendo 87,2% de fácil acesso, 7,7% de média dificuldade e 5,1% de dificuldade máxima. As associações publicam anualmente edições atualizadas de guias que costumam trazer relatos detalhados sobre os caminhos e a topografia visitada. Hoje, há mais de 87 guias disponíveis nas livrarias e centros turísticos traduzidos para inglês e alemão. Também é possível optar pelos passeios guiados, que variam entre 140 e 610 euros, conforme a escolha da rota.
Comida boa? Bem, não dá para esperar muito além daquela que o viajante traz consigo, como salsichas enlatadas. E das refeições ofertadas pelos guardiões dos abrigos, como sopas e chás silvestres. Existem, sim, dicas para se ganhar energia durante o longo caminho. “A bebida destilada é um bom parceiro pra esquentar e conectar o viajante”, salienta Branko, revelando uma garrafa de platina comprada especialmente para as montanhas. Sempre abastecida de rum ou grapa, claro!
Os Alpes ensolarados
A beleza dos alpes eslovenos está no sol que brilha mais em suas montanhas do que nas dos países vizinhos, e em cerca de 80 plantas endêmicas que nascem em seus campos de altitude, como a Campanula zoisii, a Papaver julicum, a Rannunculus traunfellneri – flores delicadas e coloridas bastante apreciadas para o preparo de chás e infusões. Com a chegada da primavera, a vegetação maltratada pelas temperaturas de até 20 graus negativos renasce na grama seca. “A neve protege essas plantas das baixíssimas temperaturas, além de nutri-las com uma grande reserva de material orgânico. Alimentadas e com energia, elas ganham vida nova nesta época do ano”, diz o biólogo Miha Valic. A flor trombecia é conhecida como um dos primeiros sinais de vida depois do inverno. Quando assoprada no caule, emite o som de uma trombeta. “As crianças adoram”, conta Bolhar.
A fauna da região também muda de comportamento com a chegada da primavera. No céu, passam as primeiras revoadas de aves migratórias. E animais selvagens, como veados, antílopes e alguns répteis, migram para os campos mais altos em busca de ventos gelados. Durante o inverno, fazem justamente o contrário: fogem das nevascas. A habilidade de alguns deles é célebre entre os visitantes das montanhas, como descreve o alpinista Gregor Kresal: “esses animais fazem verdadeiros malabarismos nos grandes paredões. Têm grande impulsão, velocidade e flexibilidade. De repente, quando você vê, lá estão eles, pulando de alturas de até 10, 15 metros, sempre se equilibrando lá embaixo.”
Nas florestas, os ursos saem da fase de hibernação e seus filhotes perambulam curiosos pelos arredores das cavernas. Um perigo. “Os ursos fogem do barulho e das pessoas, ficam isolados. Não atacam. A situação de risco é quando os filhotes estão por perto. Os pais ficam furiosos se há alguém próximo”, explica Valic. Quem mais sofre com a volta desses animais são os fazendeiros, que perdem cabras e ovelhas nas madrugadas e levam o problema aos noticiários.
Enquanto isso, lagos e riachos absorvem as crostas de gelo e, no lugar de uma legião de patinadores, começam a deslizar esportistas de remo e rafting. Os montanhistas também começam a planejar passeios nas montanhas, mas com muito zelo. Com a neve menos “consistente”, são poucos os que se arriscam a escalar os picos eslovenos, e até mesmo esquiar, na primavera. “As probabilidades de avalanches se tornam muito maiores”, explica Gregor.
Turismo
A cada ano, mais de um milhão e meio de pessoas visitam as montanhas – a maioria com o objetivo de conhecer o Triglav, o que transformou o ecoturismo em uma importante fonte de renda. “Ar puro, energia, vida. São elementos que sempre encontramos nas alturas”, ressalta a empresária Katka Bolhar, filha de Branko. Para quem vai ao Triglav pela primeira vez, são comuns as festas de batismo, em que os homens não escapam da surra – literalmente – com a corda utilizada para a subida. Dizem que uma vez parceiros lá em cima, parceiros para vida toda. Não por acaso, muitos pubs da capital Ljubljana recebem semanalmente reuniões informais dos membros das associações de montanhistas.
Estar sempre acompanhado de um grupo experiente na visita às montanhas é um dos mandamentos que regem a cartilha de todo bom alpinista. Em tese, para se aventurar, não se faz necessário pedir autorizações específicas, nem pagar tarifas extras – além de cerca de 10 euros para dormir por uma noite nos abrigos direcionados aos visitantes. Na prática, entretanto, torna-se crucial cumprir algumas regras.
Na região que compreende o Parque Nacional do Triglav, patrimônio histórico fiscalizado pelo governo, é proibido colher qualquer tipo de planta. Já nas demais montanhas, grande parte das espécies existentes de flores e frutas podem ser retiradas, com exceção das que figuram na lista vermelha de espécies ameaçadas de extinção. Quem não respeita as leis, corre o risco de ser multado.
Tudo nos Alpes requer sensatez. Gregor Kresal adverte: “Se você quiser fazer qualquer um dos caminhos e não tem experiência nas alturas, jamais se aventure sem a ajuda de um profissional. Não que sejam passeios perigosos. Mas é preciso conhecer as artimanhas das montanhas, os sinais do tempo, dos ventos, das tempestades. E respeitar cada pormenor que a natureza impõe a todos nós”.
O alpinista tem bagagem pra afirmar isso. Aos 40 anos, escalou os principais picos da Europa, como o Montblanc, e da Ásia, como a Cordilheira do Himalaia. Em 2002, virou notícia internacional ao ter o grupo que liderava em uma escalada no Nepal seqüestrado por mais de 300 rebeldes maoístas. Foram libertados quase três semanas depois em troca de um resgate de 7 mil euros . Perguntado se, depois de tantas experiências e dificuldades, deixara de sentir medo dessas aventuras, o alpinista foi enfático. “Sabe o que mais me preocupa? São aquelas pessoas que dizem não ter medo de mais nada. Por excesso de valentia, já perdi alguns amigos profissionais, que caíram perto aqui, de casa, em quedas bobas, em montanhas relativamente fáceis. Ter medo nas montanhas é bom. Dá limites. Faz você respeitar o gigantismo da natureza ao seu redor”.
A tradição eslovena de se embrenhar pelos caminhos rochosos das montanhas nasceu no século dezessete, tempos em que a Eslovênia fazia parte do Império Austro-Húngaro. Mostrar habilidade em escalar a topografia da região era uma afirmação da própria identidade. “Sempre quisemos mostrar aos nossos rivais e ao mundo que éramos imbatíveis nas montanhas”, conta Gregor. Ele lembra que foi justamente durante os anos de idiossincrasias com os austro-húngaros, em 1871, que um padre esloveno cravou pela primeira vez a bandeira nacional no topo do Triglav. Até hoje existe um monumento dedicado a ele ao lado das cinco casinhas para alpinistas e outros visitantes que chegam ao topo da montanha.
*Fernanda Martorano é jornalista e esteve este ano de férias na Eslovênia.
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