Reportagens

Quase unânime

As propostas sobre a criação de Florestas Estaduais na Calha Norte do Pará tiveram adesão maciça da população local. Até a mineradora Rio Tinto quer estar em uma delas.

Manoel Francisco Brito ·
7 de agosto de 2006 · 18 anos atrás

“A região de Faro é belíssima. Vale a pena conhecê-la. A pressão humana ainda é baixa e os rios e florestas estão relativamente intactos”. Faro é o último município na Calha Norte do rio Amazonas no Pará. Fica às margens do rio Nhamundá, que marca a divisa com o estado do Amazonas e a dica para visitar a área vem de uma autoridade insuspeita, Adalberto Veríssimo, pesquisador sênior do Instituto do Meio Ambiente e do Homem da Amazônia (Imazon), que em seus 14 anos de vida amealhou um dos maiores bancos de dados com informações sobre a região.

Veríssimo foi para lá na sexta-feira, subindo o rio de voadeira. A viagem, que começou em Oriximiná, durou três horas e ele não tem a menor dúvida que passou pela região na melhor época do ano. “O clima está ameno, com dias lindos. É uma área muito bonita, de lagos naturais que no período de cheia se confundem com os rios. As águas agora estão baixando, as praias estão começando a aparecer, mas ainda se navega na altura das copas das árvores”, diz. Infelizmente, Veríssimo não teve muito tempo para ficar apreciando a paisagem. Ele passou por Faro ralando.

Sua ida foi parte de um périplo de uma semana pela parte Oeste da Calha Norte paraense como integrante da diminuta equipe – apenas 6 pessoas – encarregada de fazer três consultas públicas para criar duas Florestas estaduais na área, a do Trombetas, com 3, 3 milhões de hectares, e a de Faro, com 700 mil hectares. Em julho, esse mesmo grupo esteve nos municípios de Monte Alegre e Almerin, defendendo em consultas a proposta de criar a maior das Florestas que o governo estadual quer implantar na região, a do Parú, com 3, 8 milhões de hectares.

A promessa do governador Simão Jatene é assinar os decretos das três Florestas até o fim deste mês. Se ele cumprir a palavra, o Brasil terá uma razão a mais para soltar foguete na semana da pátria. Com uma canetada, seu governo terá colocado mais tijolos num muro de proteção que tem tudo para se estender por toda a Calha Norte paraense, do Amapá ao Amazonas, consolidando a atual paisagem da região. Para erigí-lo, faltarão apenas os decretos para criar áreas de preservação permanente na região da fronteira com a Guiana e o Suriname, promessa já feita pelo governo federal.

Se forem implantadas, o nortão paraense vai ter 270 mil quilômetros quadrados de áreas protegidas contíguas. Veríssimo se entusiasma com essa possibilidade. “Imagina. O Pará terá o maior mosaico de Unidades de Conservação contíguas da Amazônia. Talvez do mundo”, diz. Ele lembra que as Florestas ajudarão a consolidar a atual paisagem no Norte do segundo maior estado brasileiro. Na faixa Sul da região, entre Almerim e Oriximiná, há atividade agrícola. Mas daí para cima, é praticamente só mata. No miolo, as três novas áreas do estado se juntam a outras Florestas Estaduais e Nacionais, criando um cinturão de proteção em torno da Reserva Biológica do rio Trombetas. No Norte, já há três Terras Indígenas demarcadas. O resto depende do governo federal.

Outro nome

Uma das primeiras reinvindicações das 80 pessoas que compareceram à consulta em Faro foi a mudança do nome da floresta, que originalmente homenageava os nomes de origem índia dos dois principais rios da região, o Nhamundá e o Mapuera. Preferiam que ela se chamasse apenas Floresta de Faro. O público argumentou que o nome não só era complicado, como parecia celebrar o município amazonense que fica do outro lado do Nhamundá, batizado do mesmo modo que o rio.

A sugestão foi prontamente aceita. “Nhamundá-Mapuera é mesmo enrolado. Eu perco dez minutos soletrando o nome toda vez que discuto o assunto. Faro é mais simples”, diverte-se Veríssimo. A troca de nome foi o momento mais curioso de uma consulta que durou 3 horas e onde o apoio do público, cerca de 80 pessoas, à proposta do governo estadual de fazer a Floresta, foi unânime.

Nos outros dois municípios, Oriximiná e Óbidos, onde debateu-se a criação da Floresta do Trombetas, se não chegou a haver unânimidade nas consultas, a idéia foi encampada pela esmagadora maioria dos presentes. Veríssimo acha que a relativa facilidade com que a população local nesses municípios da Calha Norte – a reação foi semelhante em Monte Alegre e Almerim em relação à Floresta do Parú – consentiu em ter em suas terras Unidades de Conservação tem muito a ver com o estágio da pressão humana na região. A Calha Norte paraense, infelizmente, há muito deixou de estar imune à antropização.

Mas nem de longe se assemelha ao Oeste e Sul do estado, onde a grilagem, a exploração madeireira e o avanço da fronteira agropecuária fizeram as duas áreas figurar com destaque nos índices de desmatamento da Amazônia dos últimos anos. “No caso de Faro nem tanto, mas nos outros municípios, já é visível a presença de grileiros e madeireiros ilegais rondando as áreas”, conta Roberto Palmieri, do Imaflora, que ajudou a montar as consultas. Na que aconteceu em Faro, apareceu até um sujeito se dizendo representante de uma tal de Internacional Madeiras que, claro, discursou contra a criação da Floresta.

“Lá na Calha Norte as prefeituras e populações estão muito despreparadas para enfrentar um eventual recrudescimento da grilagem. Há poucas pessoas na mata em relação à extensão total das áreas que serão demarcadas e o nível de institucionalização e organização é baixíssimo. Num confronto com invasores, seriam facilmente varridos do mapa”, diz Veríssimo. Por essa razão, os locais deram suporte ao que, na sua visão, pode ser considerado um mal menor. Uma Floresta impõe limites à exploração econômica, obriga a que ela obedeça a um plano de manejo, mas dá mais estabilidade legal à estrutura fundiária local, impedindo que as terras sejam ocupadas na marra.

Faro é de longe o município mais frágil à ação dos grileiros. Muito pobre, tem 13 mil habitantes, 6 mil na zona rural. O número de eleitores é de 5 mil e mais de 10% deles trabalha no maior empregador local, a Prefeitura, que tem 600 funcionários. O resto vive de comércio ou de coleta, inclusive de madeira, sustentada principalmente pelas famílias dos funcionários públicos. A câmara tem 9 vereadores. O orçamento anual é de 9 milhões de reais. O receio de encarar a grilagem com essa estrutura é tão grande que um grupo de 100 pessoas que está exatamente na borda da futura Floresta, conhecido como Comunidade do Português, pediu para ser incluído nela. Serão atendidos.

Pouca gente, pouco impacto

Dentro da Floresta propriamente dita, habitam cerca de 150 pessoas que vivem basicamente da extração de óleos vegetais, castanhas e alguma madeira. “A maioria tem um roçado. Alguns têm gado. Mas a atividade é de subsistência”, diz Palmieri. Individualmente, sua pegada ambiental é grande. Ninguém tem qualquer noção de manejo florestal. “Mas como não são muitos, o impacto ainda é muito baixo”. É uma situação muito semelhante à dos quilombolas que foram encontrados habitando parte da área destinada à Floresta do Trombetas.

“Nós sabíamos que eles estavam lá. Mas só agora é que deu para começar a medir a situação com mais exatidão”, conta Veríssimo. Estima-se que existam mil quilombolas por lá e eles mostraram dois títulos de propriedade sobre 75 mil hectares, um pouco menos de 5% da área total da Floresta, cuja validade será verificada em Belém, junto ao Instituto de Terras do estado, ainda essa semana. Parece terra demais para pouca gente, e é, mas podia ser pior. As informações iniciais obtidas pelo pessoal que foi fazer a consulta em Oriximiná davam conta que eles teriam direito a até 300 mil hectares.

Veríssimo, que se envolveu no processo porque o Imazon foi responsável pelos levantamentos técnicos envolvidos na demarcação das três Florestas Estaduais na Calha Norte, passa os próximos dias em Belém processando as informações obtidas na consulta em conjunto com os técnicos do governo estadual, para fazer a sintonia fina nas propostas. Os desenhos certamente sofrerão alterações. A Floresta de Faro, ao engolir a Comunidade do Português, ganha mais 10 mil hectares. A do Parú, que passou por consultas públicas em julho, cresce no Norte, na região do município de Paquequer, para incluir uma operação de extração de bauxita da mineradora Rio Tinto.

Foi a própria empresa que pediu a inclusão. “Ela tem várias razões para colocar a mina numa unidade de uso direto. Primeiro não é ilegal explorar minério em Florestas. E depois, a Rio Tinto usa até muito pouco do terreno para retirar a bauxita”, diz Veríssimo. “Sob a jurisdição de uma Floresta Estadual, a área da Rio Tinto ganha um pouco mais de proteção de pressão externa. E do ponto de vista fundiário, ela tem maior estabilidade regulatória”. Onde a Floresta de Parú perderá muito terreno será ao Leste. Toda a cadeia de montanhas que acaba na fronteira do Parque Nacional do Tumucumaque vai ficar fora dela por razões técnicas.

Ocupação pré-planejada

A área, de serra, não se presta à exploração econômica, mas é importantíssima em termos de biodiversidade e portanto ideal para virar uma Unidade de Proteção Integral. Nesse caso, é melhor que ela fique sob jurisdição do governo federal, que tem mais condições de mobilizar recursos para sua gestão. Ele conta que pela primeira vez, no caso das Florestas Estaduais, a sua criação seguiu como parâmetro o plano de macrozoneamento ecológico e econômico do estado, aprovado pela Assembléia Legislativa em março de 2005. A regra na região é decretar a implantação de áreas protegidas ou por excesso de pressão ou em nome da proteção da biodiversidade. Não há mal nenhum nisso. Ambos os critérios são relevantíssimos.

Mas as Florestas do Parú, Trombetas e Faro trazem a possibilidade de, em áreas onde a presença humana ainda não produziu muitos estragos, se aplicar na criação de unidades parâmetros definidos pelos governos para ocupar seu território. Num país como o Brasil, onde ocupação e esculhambação frequentemente são sinônimos, isso é um avanço. Significa que tem gente, autoridades inclusive, dispostas a seguir a legislação.

Essa foi uma das razões pelas quais o governo do Pará e o Imazon não imaginaram fazer lá nenhuma unidade estadual de proteção integral. No macro-zoneamento do estado, ela está reservada para área de uso sustentável, como Reservas Extrativistas (Resex) e Florestas. Mas as Resex nunca foram de fato uma alternativa considerada para a Calha Norte. Primeiro porque são desnecessárias. Há pouca gente dentro das matas da região. E depois porque, dentro do contexto dos municípios locais, elas não serviriam como barreira à eventuais desmatamentos. “E na prática, há áreas dessas florestas que funcionarão como se fossem de proteção integral porque são extremamente inacessíveis em algumas de suas partes”, diz Veríssimo.

Cinqüenta e três por cento do território destinado à Floresta do Parú, por exemplo, não têm qualquer traço de civilização. A prioridade nessa reta final do desenho das novas Florestas será dado à de Faro. Não apenas porque o município é muito carente, mas por que lá a área é que tem a maior possibilidade de começar a gerar valor econômico com atividades florestais. Sua Floresta corre ao longo do Nhamundá. Dali para o rio Amazonas é um pulo. Portanto, tem localização privilegiada para escoar produção. Além disso, o terreno da unidade se presta a várias operações certificadas, coisa sempre bem vinda em áreas de proteção de uso direto. Como se vê, Faro pode ser pobre, mas foi integralmente abençoado pela natureza. E não apenas pela sua beleza.

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