Reportagens

O último capítulo

Parte final do relatório do IPCC sobre aquecimento global recomendará mudança radical no uso de combustíveis. A discussão em torno do texto revela divergências entre países.

Eric Macedo ·
3 de maio de 2007 · 17 anos atrás

A última parte do que vem sendo considerado o mais importante documento sobre as mudanças climáticas será divulgada às 13h desta sexta-feira em Bancoc, na Tailândia (para desespero da redação de O Eco, três da manhã no horário de Brasília). Trata-se do terceiro segmento do quarto relatório (AR4) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Desde segunda-feira, diplomatas têm se debruçado sobre as 24 páginas do seu sumário executivo, que fala sobre as medidas de mitigação dos efeitos do aquecimento global. O teor da seção tem sido adiantado há algum tempo pela imprensa, com o vazamento de informações do rascunho preparado por um grupo de 190 cientistas de todo o mundo. Agora esse documento está nas mãos de delegações de mais de cem países, que negociam modificações no texto com os pesquisadores.

O relatório preparado pelos cientistas pede mudanças bruscas no uso mundial de energia, sob a ameaça de que as emissões cresçam no mínimo 40% entre 2000 e 2020, se os governos cruzarem os braços. Para evitar uma catástrofe, dizem os membros do painel, só agindo rapidamente. E o tempo está se esgotando. Segundo uma notícia publicada recentemente pela agência Reuters, as soluções propostas são velhas conhecidas: passam pela mudança para combustíveis menos poluentes, diminuição das emissões da agricultura (proveniente do uso de químicos) e tudo relacionado à eficiência energética, como edificações e iluminação que gastem menos eletricidade.

O relatório também sugere a captura de carbono em usinas a carvão, o uso de energias renováveis, como solar e dos ventos. Como adiantou a O Eco o engenheiro Roberto Schaeffer, um dos autores do relatório, o documento tem capítulos sobre transporte, indústria e edificações, focando os usos finais da energia. Entre outras coisas, o uso de janelas duplas em países frios pode diminuir a necessidade de aquecimento artificial e há grande potencial para fabricação de eletrodomésticos mais econômicos. Para o professor de planejamento energético da Coppe/UFRJ, a importância do relatório está em chamar atenção para o fato de que há, hoje, tecnologia suficiente para realizar as mudanças necessárias. E que será preciso incorporar as mudanças climáticas em qualquer política de desenvolvimento que se pense daqui para frente. “É possível aos países continuar a se desenvolver com menos emissões”, diz o cientista.

Os custos das medidas não são nada absurdos: ficam entre 0,2 % e 3% do Produto Interno Bruto mundial. Isso até 2030. O gasto aumenta de acordo com a rapidez que se quer fazer no corte de emissões. E quanto maior o corte, também mais caro. As conclusões confirmam as afirmações do economista Nicholas Stern, que divulgou no ano passado um relatório sobre os custos da ação contra o aquecimento: ele pode chegar a 20% do PIB se o mundo empurrar o problema com a barriga. “Os esforços de mitigação pelas próximas duas ou três décadas vai determinar em larga medida o aumento na temperatura média a longo prazo e os impactos da mudança climática correspondente que podem ser evitados”, diz a primeira versão do sumário, segundo o The New York Times. Não importa o que se faça, entretanto, os especialistas dizem que haverá um aumento mínimo de temperatura entre 2ºC e 2,4ºC.

Ainda segundo o rascunho, os países em desenvolvimento oferecem boas oportunidades para se evitar novas emissões, uma vez que estão diante de uma potencial aceleração da industrialização e construção. Pode-se evitar o crescimento da poluição escolhendo bem as usinas de geração de energia e o design dos edifícios. Mas, nas negociações, são justamente esses países que querem tirar o corpo fora das grandes ações de combate ao aquecimento. A idéia é preservar as regalias adquiridas desde o Protocolo de Kioto, que estabelece que os países desenvolvidos são mais responsáveis pelo aquecimento uma vez que basearam sua industrialização no uso de energias sujas – e, por isso, são eles que devem se esforçar para desfazer o estrago. O tratado, que não obriga os países em desenvolvimento a fazer reduções, vai ser rediscutido em 2012.

Pano para manga

Desta vez, o movimento começou com a China, cujos delegados apresentaram a maioria das 1.500 propostas de modificação do rascunho. O país deve se tornar ainda este ano o maior emissor mundial de gases do efeito estufa. E o governo não quer se ver atado a compromissos de redução de emissões – uma vez que a maior parte de sua energia é gerada pela queima de carvão, o combustível que mais emite gases poluentes – quando novas ações forem propostas em fóruns internacionais.

Segundo uma reportagem da revista britânica New Scientist, um dos principais pedidos dos chineses é que seja feita uma inserção no último parágrafo que culpe as nações industrializadas pela maior parte da poluição – segundo os asiáticos 75% da culpa. E eles não estão sozinhos. Brasil e Índia resolveram apoiar as suas demandas. O fato acabou acirrando um certo “conflito entre ricos e pobres”, que tem aparecido com freqüência nas discussões sobre o aquecimento global. Schaeffer diz que o relatório lembra a disparidade entre emissões per capta de países desenvolvidos e em desenvolvimento. Para o pesquisador, há coerência das exigências com o princípio de “responsabilidades comuns, porém diferenciadas” que regeu as discussões na Eco 92. “Há que envolver os países em desenvolvimento [nas metas de redução], mas não no mesmo pé de igualdade”, opina o engenheiro.

O fato é que as negociações políticas têm se tornado cada vez mais acirradas a cada encontro do IPCC realizado. À medida em que sobem as certezas dos cientistas quanto ao fenômeno, maior a divergência política entre os países, que querem se livrar de responsabilidades que criem empecilhos às suas economias. Como mostra uma outra reportagem da Reuters, o painel da ONU não tem forças para mudar a realidade na prática. “O IPCC não tem músculos, só massa cinzenta”, disse o presidente do grupo, Rajendra Pachuri, a repórteres da agência. Mas fazer algo, para ele, é urgente. “A ciência certamente dá muitas e forçosas razões para agir”.

* Felipe Lobo colaborou com esta reportagem.

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