A experiência de 30 anos com o uso de etanol como combustível automotivo dá aos brasileiros uma perspectiva única para acompanhar o debate sobre o assunto nos Estados Unidos. O conhecimento acumulado nesse período permite uma avaliação qualificada das propostas das discussões que se iniciam por lá. E muitas vezes essas discussões não parecem trazer tanta novidade assim para quem conhece o assunto.
Esse é o caso do paper publicado em abril pelo professor Mark Z. Jacobson, da Universidade Stanford, na Califórnia. Jacobson procurou projetar qual será o impacto sobre a saúde pública nos Estados Unidos até o ano 2020 se a gasolina for substituída por E85, um combustível composto por 85% de etanol e 15% de gasolina.
O estudo, disponível no site do autor, tem causado tremenda polêmica. Jacobson usou técnicas de modelagem matemática para simular condições atmosféricas no ano 2020 nos Estados Unidos em geral e, em particular, na região de Los Angeles, uma das bacias mais poluídas daquele país. Foram duas as alternativas estudadas: frota de veículos movida a gasolina, e frota impulsionada por E85.
O resultado foi surpreendente. Ele descobriu que a substituição da gasolina por E85 reduziria os níveis de certos compostos cancerígenos na atmosfera, mas aumentaria os níveis de outros. E elevaria significativamente as concentrações de ozônio, um importante precursor do smog, aquela mistura de névoa e poluição associada ao fenômeno da inversão térmica. Quem mora em São Paulo – na cidade do México, Atenas ou Hong Kong – conhece.
A conseqüência, conclui Jacobson, é que a adoção do E85 não traria benefícios de saúde pública para os americanos. O risco de câncer seria mais ou menos o mesmo, e haveria, segundo o estudo, um risco maior de problemas de saúde causados pelo ozônio na atmosfera. Jacobson admite incerteza quanto aos resultados, pois não é possível prever quais controles de emissões serão impostos no futuro. Mas ficou claro, segundo ele, que ninguém mais poderá dizer que o etanol é um combustível limpo, sem mais nem menos.
Essa discussão é parte do processo científico. Ao publicar os resultados do seu paper, o autor convida outros especialistas no assunto a criticá-lo. Esse é um campo de pesquisas relativamente jovem, o que equivale a dizer que Jacobson está fazendo ciência de ponta. O que torna a controvérsia mais natural ainda. Mas isso também não quer dizer que se trata de uma discussão inteiramente isenta. É só imaginar o que representa o mercado americano de combustíveis — ou, para abrir um pouco mais a discussão, o mercado de mobilidade — para se perceber que os interesses envolvidos são gigantescos.
Incertezas
Para Gabriel Branco, consultor na área de controle da poluição ambiental com 30 anos de experiência em combustíveis alternativos, o estudo deve ser analisado com muito cuidado — especialmente no que diz respeito aos futuros padrões de emissões para o combustível. A queima da gasolina ou do etanol em motores veiculares gera diversos poluentes, com diferentes efeitos sobre a saúde pública. A questão, portanto, é identificar os prováveis efeitos da combustão do etanol de maneira a minimizá-los. Sob essa perspectiva, o etanol apresenta algumas vantagens. Ao contrário da gasolina, é uma substância pura, e portanto muito mais fácil de estudar e de manipular.
Gabriel Branco chama atenção para as incertezas inerentes ao uso dos modelos matemáticos — ponto ressaltado por outros especialistas, como o consultor Alfred Szwarc. O resultado depende das premissas adotadas, o que não permite conclusões muito precisas. Esses estudos são úteis para indicar tendências, mas serão necessários muitos deles para que tenhamos uma visão mais clara do problema. E não se trata apenas da incerteza com relação às decisões de política pública que serão tomadas nos próximos anos. Szwarc lembra que modelagem de poluição do ar é extraordinariamente complexa. Especialmente no caso do ozônio, que não é emitido pelos motores, e sim produzido em reações químicas na atmosfera a partir de precursores que, esses sim, vêm dos veículos.
Réplica e tréplica
Críticos do trabalho de Jacobson já colocaram suas objeções na internet e ele já respondeu a todas — demonstrando que torre de marfim é coisa do passado. Com efeito, Jacobson respondeu no seu website às críticas exatamente daqueles que representam interesses concretos — Ethanol Coalition e Renewable Fuels Association. Também sobrou para o Natural Resources Defense Council, ONG independente e respeitada que tem defendido os biocombustíveis como a grande alternativa para os Estados Unidos. O ponto fundamental, segundo ele, é o seguinte: o caminho para evitar as mortes causadas pelas emissões de veículos a gasolina e diesel é a sua substituição por veículos elétricos ou a célula de combustível, cuja energia virá do vento ou do sol.
Mas essa incerteza toda não pode ser razão para não agir. Para André Ferreira, consultor da Fundação Hewlett, ainda há muito para ser pesquisado na ciência da poluição atmosférica, mas as nossas decisões de política pública não podem esperar um nível ideal de conhecimento que talvez nunca venha a ser atingido. O melhor, segundo ele, é colocar em prática regras flexíveis, que possam ser atualizadas na medida em que novos nexos causais são descobertos. E continuar investindo em pesquisa, apesar das dúvidas com relação a alguns dos instrumentos usados, como os modelos matemáticos de química atmosférica. São imperfeitos, mas não dispomos de nada melhor.
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