Eduardo Braga, governador do Amazonas, teve uma reunião importante no último sábado em Manaus com políticos, professores do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Inpa), empresários locais e representantes de algumas Ongs. O encontro, oficialmente, destinava-se a explicar à platéia pontos da nova lei estadual contra o aquecimento global. De certo modo, foi um pouco mais do que isso. Passado o período das explicações, Braga e o empresariado discorreram sobre a necessidade de se fomentar pesquisas e estudos sobre a região para subsidiar decisões políticas e de investimentos. “Eu estou na Amazônia há 30 anos e foi a primeira vez que eu ouvi autoridades dizendo isso. É uma mudança radical de paradigma” , conta o biólogo Adalberto Val, diretor do Inpa.
A demanda por mais informação não foi a única surpresa da reunião. Braga aproveitou também para jogar no ar um balão de ensaio. Cauteloso, usando o gerúndio como escudo, disse que seu governo estava estudando a possibilidade de aposentar a proposta federal de recuperar e asfaltar a BR-319, que liga Manaus à Porto Velho, e por no seu lugar uma ferrovia. Apesar de a idéia não ser necessariamente nova, o fato de ela ter saído da boca de um chefe de executivo da região é quase uma revolução. Afinal de contas, sempre que os governadores de estados da Amazônia e presidentes da república, do general Emílio Garrastazu Médici a Lula, encamparam a necessidade de ligá-la por via terrestre ao resto do país, as únicas opções apresentadas sempre foram as rodovias.
“É um conceito novo”, diz Val. “E pelo menos o debate é muito bem vindo”. Principalmente levando-se em conta o estrago que rodovias fizeram na floresta amazônica ao longo dos últimos 40 anos. A abertura de estradas na região iniciada durante o regime militar deu margem a um processo de ocupação desordenado e violento, responsável direto pelo aumento do desmatamento. Sem qualquer controle governamental, levas de imigrantes penetraram mata adentro, colonizando beiras de rodovias ou utilizando o seu leito como ponto de partida para a abertura de estradas clandestinas, que só serviram para agravar os impactos ambientais e o caos da ocupação.
“A ocupação a partir das estradas foi devastadora”, diz Marcelo Marquesini, do Greenpeace. “Pelo menos na teoria, ferrovias permitem um controle maior da penetração”. Val concorda. “Rodovias provocam uma maior capilarização da presença humana. Elas facilitam voce encostar um caminhão cheio de gente com motosserras em qualquer lugar ao longo do seu traçado para desmatá-lo e colonizá-lo”. Nas estradas de ferro, que conectam diretamente uma estação à outra, esse tipo de penetração torna-se mais complicado. Além disso, elas tem uma escala mais baixa de impacto do ponto e vista da poluição.
Desafio para estudo
“Na medida em que voce utiliza eletricidade ou bio-combustíveis para as locomotivas, ao contrário das estradas, onde a locomoção acontece a base de combustíveis fósseis, a emissão de gases pode ser sensivelmente reduzida”. Virgílio Viana, secretário de Desenvolvimento Sustentável do governo do Amazonas, conta que um cálculo preliminar indica que por uma ferrovia no traçado da BR-319 evitaria, num espaço de 4 décadas, a emissão de 3 bilhões de toneladas de carbono na atmosfera, considerando-se o tráfego esperado para esse período se a estrada, como diz querer o governo federal, fosse recuperada e aberta ao tráfego de carros e caminhões.
Val, um paulista que cresceu à beira de uma estrada de ferro, lembra que todas essas vantagens em relação ao uso de ferrovias na Amazônia ainda precisam de avaliações científicas para serem confirmadas. Mas acha pelo menos importante que o assunto venha à tona. “Serve como um desafio para estudarmos alternativas de infraestrutura aos modelos de desenvolvimento que vem sendo propostos para a região”, diz. O cuidado com que Braga vem tocando no assunto da ferrovia em público não é o mesmo que ele vem utilizando quando fala de trilhos nos gabinetes oficiais. Há duas semanas, num encontro com o presidente do BNDES, Luciano Coutinho, na sede do banco no Rio de Janeiro, afirmou que seu governo iria defender a colocação de trilhos, e não de asfalto, no leito da rodovia.
Chegou a ouvir de Coutinho o que lhe soou como um sinal verde à idéia. O presidente do BNDES retrucou que seria possível que a instituição até financiasse a construção de uma ferrovia no local. Braga deu recado igual para a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, na quarta-feira da semana passada. Mas dela não ouviu nada. Sentiu apenas um certo constrangimento, coisa que não chega a ser surpreendente. Marina faz parte de governo de viés desenvolvimentista, que incluiu como meta do PAC a recuperação e o asfaltamento da BR-319. Além do mais, Braga estava na sua frente encampando uma idéia que a rigor, levando-se em conta o passado das estradas na Amazônia, deveria ter sido abraçada por ela. Nem que fosse para estabelecer o debate.
Contra-mão
Do ponto de vista prático, asfaltar a BR-319 voltou a ser uma espécie de sonho distante do governo federal e de alguns políticos do Amazonas, como o ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento. Para ambos, a BR-319 tem sido mais um objeto de marketing eleitoral do que de ações reais de governo, o que no fundo é uma ótima notícia para a saúde da floresta que cresce nas suas bordas. No ano passado, ela passou por toda a coreografia que tem acompanhado as promessas de grandes obras de infra-estrutura feita por Lula na Amazônia. Primeiro, foi qualificada como fundamental para o desenvolvimento da região.
Em janeiro de 2006, o governo federal colocou 15, 4 milhões de hectares de terras ao longo da estrada sob o regime de Área de Limitação Administrativa Provisória (ALAP), impedindo que por um prazo de sete meses ali se desenvolvesse qualquer atividade econômica. A medida, garantia a burocracia federal em Brasília, destinava-se a evitar a ocupação desordenada que em geral acontece quando se anuncia que vem asfalto para uma estrada na Amazônia. Prometeu-se criar 9 unidades de conservação na zona sob influência da estrada. Três delas seriam áreas de preservação permanente.
Um pouco antes das eleições, pavimentou-se um trechinho inicial da estrada próximo a Manaus e a coisa, até agora, ficou nisso. O prazo para a manutenção da ALAP expirou, nenhuma unidade de conservação foi criada e a obra tão cedo não deve ter verba federal alocada. Essa situação, no entanto, só torna a bola da ferrrovia levantada por Braga mais oportuna ainda para ser examinada. Seria muito pior entrar nesse debate se a BR-319 já estivesse em franca recuperação e o Brasil, mais uma vez, seguindo pela contramão na ocupação da Amazônia.
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