Há pouco menos de um mês deu-se início uma batalha no campo da comercialização de animais silvestres no Brasil. De um lado o Ibama, que lançou uma consulta pública, que será finalizada neste próximo dia 6 de abril, sobre a lista que define 54 espécies nativas como as únicas que poderão ser vendidas como pets. Do outro os criadores comerciais, dizendo que a lista é muito restritiva e consiste numa ameaça aos trabalhos de conservação que poderiam ser feitos com os investimentos na reprodução dos bichos criados em cativeiro. E no meio disso tudo estão os animais, vivendo em cativeiro ou correndo riscos na natureza, o tráfico a todo vapor e os questionamentos éticos sobre a aquisição de uma espécie selvagem como animal de companhia.
Das 54 espécies listadas pelo Ibama, 51 são aves (a maior parte psitacídeos, como os papagaios) e três são répteis (iguana e dois lagartos). E pára por aí. Se esta lista for aprovada, nenhum primata ou outro mamífero brasileiro, por exemplo, poderá mais ser vendido como animal de companhia. Mas porque uma mudança como essa depois de tanto tempo de comércio legalizado? Segundo a COEFA, Coordenação de Gestão do Uso de Espécies de Fauna do Ibama em Brasília, setor que liderou o trabalho de definição das espécies, os objetivos da lista são combater o tráfico, problema antigo e crescente no Brasil, e aprimorar o trabalho de controle dos técnicos do instituto, que passariam a ter um documento oficial como base para consulta no processo de fiscalização.
“Na verdade esta lista regulamenta o comércio de animais silvestres, que já existe no Brasil há 40 anos. Usamos os critérios definidos pelo Conama em 2007 para avaliar e escolher as espécies mais adequadas para comercialização, considerando inclusive as que já são comumente mais procuradas pela sociedade”, explica Raquel Sabaini, analista ambiental e coordenadora substituta da COEFA. “Portanto, não é uma lista restritiva, mas um trabalho baseado em critérios técnicos. Não podemos, por exemplo, permitir a venda de macacos como pets sabendo que a probabilidade de primatas transmitirem doenças para os homens é grande.”
Mesmo com a explicação técnica, os criadores comerciais registrados questionam os critérios para a escolha das espécies e a aplicação da lista na prática. Também se defendem ressaltando o papel que a criação em cativeiro teria para a conservação da biodiversidade. “A base do nosso negócio é a reprodução dos animais. Sem filhotes não há venda. E para que os animais reproduzam é necessário que eles estejam bem de saúde e não sofram maus-tratos. Por isso investimos muito no desenvolvimento de tecnologias de manejo visando o bem-estar dos animais”, diz Edmundo Dubauskas, proprietário do criadouro Fauna Brazilis, em Tanguá, estado do Rio de Janeiro, ressaltando que gostaria de trabalhar em conjunto com ONGs em prol da conservação de primatas, o que não acontece, segundo ele, por preconceito em relação aos criadouros comerciais.
Dubauskas é um exemplo de criador comercial que terá sua atividade paralisada caso a lista proposta seja promulgada. Ele cria e comercializa há 10 anos quatro espécies de sagüis: sagüi-de-tufo-branco, sagüi-de-tufo-preto, sagüi-de-Wied e sagüi-de-cara-branca. Vende cerca de 50 animais por ano, por um preço médio de R$ 2700 cada um, aparentando ser um negócio lucrativo. “Nunca tive problemas com os órgãos fiscalizadores durante todo esse tempo. Esta lista de apenas 54 espécies acaba desvalorizando quem trabalha dentro da lei. O Ibama e a Polícia Federal deveriam prender quem faz o comércio de forma ilegal. O tráfico vai continuar, com ou sem a lista”, reitera Dubauskas.
“Os criadores e os lojistas registrados são os maiores fiscalizadores do tráfico, pois denunciam o comércio ilegal. Se o Ibama coloca esta lista em prática acaba perdendo esses parceiros. Acho essa decisão bem incoerente. A procura por animais dentro da lei é grande, quem gosta faz questão de pagar a mais por animais legalizados e o mercado é lucrativo. A questão é que as espécies listadas nesta proposta são inviáveis economicamente.”, opina Ricardo Romanetto, proprietário da Reserva Romanetto, em Curitiba, onde cria e comercializa, há 4 anos, tartarugas d’água e jabutis. “Atualmente tenho 900 jabutis e 1300 tartarugas na reserva. Para onde irão todos esses animais com o fim da comercialização? O Ibama não tem estrutura e nem recursos para receber, alocar e tratar todos os animais criados em cativeiro hoje. Será um caos, um problema para a fauna brasileira”, afirma Romanetto.
Em relação à destinação dos animais que não poderão mais ser vendidos como pets, o Ibama explica que cada criador deverá apresentar um plano de fechamento do seu estabelecimento, cujo prazo será estabelecido caso a caso, juntamente com o instituto e considerando as características de cada espécie. E as pessoas que têm os animais registrados não precisarão devolvê-los. Devem apenas manter a documentação de controle e, principalmente, não adquirir animais de forma ilegal.
“É importante ressaltar que até 6 de abril estamos abertos para receber sugestões para mudança na lista, mas estas devem ter base técnica, não podem ser subjetivas ou passar pelo desejo das pessoas apenas. O objetivo neste momento é justamente consultar a sociedade. O Conama designou o Ibama como órgão fomentador desta regulamentação, mas não somos donos da verdade. Um Grupo de Trabalho está analisando as sugestões para promulgar uma lista revisada e definitiva no dia 6 de maio”, explica a analista ambiental do Ibama.
Fora de casa
Opiniões, conflitos e lucros com a venda de animais à parte, o fato é que a lista do Ibama reacende uma discussão antiga, com vertentes éticas, culturais e ambientais. Animais silvestres são adequados para serem pets? É fato que a criação destes animais sem a devida informação especializada pode resultar em vários problemas. Entre eles questões de bem-estar do próprio animal, que não passou pelo processo de domesticação para se adaptar ao “estilo de vida humanizado”.
Outro alerta sobre as implicações negativas do hobby “pet selvagem”, mesmo restrito a 54 espécies, é a grande probabilidade de abandono do animal pelo proprietário que não dá conta de todos os cuidados necessários. A soltura de um animal silvestre num ecossistema que não é o seu habitat gera sérios problemas ecológicos. Apesar da lei recomendar a não devolução dos animais à natureza sem o expresso consentimento do Ibama, solturas indiscriminadas ainda são comuns e o controle ainda não é efetivo.
Questionado se a lista poderia ser uma espécie de incentivo à aquisição de pets exóticos, o Ibama diz que seu papel não é julgar ou incentivar a prática. “Nossa função é de comando e controle e esta lista visa definir as espécies que podem nascer e crescer em cativeiro como pets baseado em critérios técnicos e sem impactos para o meio ambiente. O que fazemos é alertar a população sobre o comércio ilegal e fiscalizar as atividades objetivando sempre coibir a retirada de animais da natureza”, esclarece Raquel. “Acreditamos inclusive que a criação comercial feita de forma séria é uma alternativa para combater o tráfico e que a proibição da venda não consiste necessariamente num recurso para conservação da espécie.”
O discurso da comercialização legalizada funcionar como uma ferramenta de combate à captura ilegal e uma aliada da conservação é baseado, segundo o próprio Ibama, em idéias defendidas na CITES (Convention on International Trade in Endangered Species of Wild Fauna and Flora) e na CDB (Convenção sobre Diversidade Biológica). Inclusive esta é a explicação dada pela analista ambiental para o fato da proposta da lista ter quatro animais que, oficialmente, são considerados ameaçados de extinção: as aves ararajuba (vítima antiga de tráfico), jandaia, maracanã e araçuaiava.
Tráfico requentado
Mas o que pode até fazer sentido na teoria, se mostra bem diferente na prática, infelizmente. E técnicos do próprio Ibama fazem este alerta. “De que adianta incentivar a reprodução de animais ameaçados através de uma comercialização legalizada se o fim desses animais é a casa das pessoas. Precisamos investir em trabalhos de reprodução sem fins comerciais, visando a reintrodução e a conservação”, defende Vincent Kurt Lo, analista ambiental do Ibama SP. “Além disso, o comércio de animais silvestres não tem se mostrado como uma solução para o tráfico. Muitas vezes os criadouros e comerciantes servem de fachada para a atividade ilegal, ou são seus principais fomentadores, sem contar as dificuldades de recursos para os trabalhos de controle e fiscalização enfrentados pelo Ibama.”
A opinião de Vincent vai ao encontro do que é vivenciado pela Polícia Ambiental, que atua na ponta do comércio ilegal investigando a atuação dos traficantes. “Nosso principal alvo nos últimos oito anos tem sido principalmente os criadores comerciais. Hoje não adianta um traficante retirar um animal silvestre da natureza sem que ele esteja devidamente marcado, com anilha ou microchip, e sem a documentação exigida. Portanto, é dentro de um criadouro comercial que estes animais são “esquentados” para serem comercializados por um valor mais lucrativo tanto no Brasil como para o exterior”, conta Carlos Eduardo Tavares da Costa, biólogo que atua há nove anos na Delegacia de Crimes Ambientais da Polícia Federal. “A experiência mostra que é difícil achar um criador comercial que esteja 100% em conformidade com a lei. Muitos acabam recebendo animais da natureza sim, pois estes saem mais baratos e dão mais lucro”, conclui.
* Jaqueline B. Ramos é jornalista ambiental free-lancer e edita o blog Ambiente-se.
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