Com 8.500 quilômetros de costa marítima e a maior rede hidrográfica do planeta, o Brasil é uma tentação para quem gosta de lançar o anzol na água. Importante atividade recreativa, econômica e social, a pesca amadora já virou ditado popular, letra de música sertaneja (de gosto duvidoso) e motivo de torneios por todo o país. A estimativa é que existam entre três e cinco milhões de pescadores amadores no Brasil, responsáveis por gerar receita anual de R$ 125 a 160 milhões de reais, 35 mil empregos diretos e 250 mil indiretos. Mas a o crescimento da prática, não só em águas brasileiras, é também responsável pela diminuição dos estoques pesqueiros em todo o mundo.
Estudo realizado pelos pesquisadores Steve Cookea, do Centro de Ciências Florestais do Canadá, e Ian Cowxb, do Instituto Internacional de Pesca Hull (Reino Unido), indicaram que, já em 2004, os “esforços de pesca” na prática amadora eram equivalentes aos da pesca comercial. A estimativa é que a atividade seja responsável por aproximadamente 12% da produção mundial de pescado. Nos EUA, por exemplo, são cerca de 40 milhões de pescadores esportivos, que gastam anualmente 45 bilhões de dólares em equipamentos, transporte, hospedagem e outras despesas associadas. Já na Europa, o número de praticantes é de cerca de 21 milhões, com gastos estimados em 10 bilhões de dólares anuais.
Por aqui, a participação é bem menor, mas as estimativas têm grande chance de estarem subestimadas, já que faltam dados. No Pantanal, famoso destino para a pesca amadora e, por isso, local onde os dados estão um pouco mais organizados, a prática representa 75% do total. Na região dos municípios de Iguape, Cananéia e Ilha Comprida, no litoral sul paulista, a pesca esportiva é o segundo atrativo mais forte. Somente nos três municípios existem sete marinas, que oferecem toda a infra-estrutura para este tipo de turista.
História dos pescadores
Os danos causados pelo crescente número de praticantes da pesca amadora vão de diminuição dos estoques de peixes e desmatamento gerados por obras de infra-estrutura turística à poluição dos rios por esgoto doméstico e resíduos das embarcações, abusos na circulação de embarcações motorizadas nos estuários – o que causa destruição de áreas de manguezais e assoreamento de rios -, massificação do turismo de pesca e conflitos com a pesca tradicional.
Gilmar Leocádio, morador de Iguape, conhece essa história. Antigo pescador profissional, ele deixou a atividade há alguns anos para se dedicar exclusivamente aos seus concorrentes: hoje é guia de pesca. “O peixe diminuiu bastante. No decorrer dos anos foi tendo muita embarcação [amadora] e tinhamos [pescadores profissionais] que querem ir para cada vez mais longe, às vezes a 40 minutos da costa. Os peixes grandes que costumávamos pegar, como um cação de 214 quilos que peguei uma vez, praticamente acabaram”, diz.
Leocádio é um dos 105 guias capacitados pelo projeto Mata Atlântica & Pesca, da não-governamental SOS Mata Atlântica. A iniciatia começou há seis meses para tentar ordenar a pesca amadora no complexo estuarino-lagunar de Iguape, Cananéia e Ilha-Comprida, conhecido como Lagamar. A idéia é realizar, de forma participativa, um diagnóstico da atividade e fazer com que os impactos trazidos por ela sejam minimizados, incluindo a falta de renda para antigos pescadores profissionais.
O projeto está dividido em quatro frentes: caracterização e monitoramento da pesca na região – que busca responder perguntas como “qual o número de pescadores que visitam o Lagamar nas diferentes estações do ano, quais locais mais frequentados por eles e quais espécies mais pescadas”-; Levantamento socioeconômico e percepção ambiental dos diferentes atores da pesca amadora na cadeia da atividade, como pesqueiros, marinas e pousadas; perfil dos pescadores profissionais e treinamento dos guias de pesca.
Resultados parciais
Os resultados parciais do projeto, apresentados entre os dias 28 e 30 de agosto pela entidade, indicam que muita coisa ainda precisa ser feita. A produção média de cada pescador amador é de 31,3 peixes por pescaria, ou 3,3 peixes por hora. A espécie mais capturada é o robalo-peva (42%), mas outras importantes espécies também são capturadas, como a cióba e o cação-viola, ambas ameaçadas de extinção. “Eles [pescadores amadores] acham que têm que pagar a pescaria com o peixe que levam para a casa”, diz Paulo César Pereira, que há 20 anos trabalha como guia e hoje faz parte do programa da SOS MA.
Entre os pescadores entrevistados, 46% não souberam indicar o tamanho mínimo para que uma espécie possa ser capturada e 72% não souberam informar a cota de peixes estipulada pelo Ibama que pode ser levada para casa. A experiência dos guias também mostra que o período de defeso não é respeitado. “Cansei de limpar pescada com ova”, diz João Nascimento dos Santos, antigo pescador profissional que hoje se dedica à atividade de guia de pesca. Entre estes profissionais, 71% percebem que a quantidade de peixes diminuiu nos últimos anos, 88% que o tamanho médio dos peixes capturados está menor e ¼ vêem que o ambiente está degradado.
Segundo Mário Mantovani, diretor de Mobilização da SOS Mata Atlântica, a situação chegou a este ponto em grande parte pelo descaso do governo estadual para a região do Vale do Ribeira, que é muito pouco desenvolvida e ordenada. “A política pública não enxerga o local porque não dá voto”, diz o diretor.
Apesar do quadro negativo, muita coisa boa vem acontecendo em Lagamar. Os antigos pescadores profissionais que tiveram de deixar a profissão por conta da diminuição dos estoques pesqueiros hoje conseguem ter uma renda média mensal fixa de R$ 700 reais como guias de pescadores amadores. Os dados do programa Mata Atlântica & Pesca, coordenado pelo biólogo Fábio Motta, também deverão subsidiar a elaboração de um Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental Cananéia-Iguape-Peruíbe, sengundo o Instituto Chico Mendes. “Queremos um desenvolvimento para a região que seja diferente de Angra, onde o turismo é predatório. Um desenvolvimento que não se contamine, como contaminou outros lugares”, diz Mário Mantovani. O projeto da SOS MA vai até meados de 2010.
*A repórter viajou ao Lagamar a convite da ONG SOS Mata Atlântica
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