Para quem nunca topou com um observador de aves, a cena pode parecer excêntrica. Munidos de binóculo, máquina fotográfica, guias de campo, entre outros apetrechos, eles são capazes de ficar horas parados em um mesmo local, “apenas” para observar um pássaro em seu habitat. No entanto, quem pensa que a atividade é desenvolvida por poucos, engana-se. O 3° Encontro Brasileiro de Observação de Aves – Avistar 2008 – mostrou que a prática vem se desenvolvendo e ganhando adeptos a cada ano, estimulada pelo turismo internacional e pelo fortalecimento dos grupos de observadores brasileiros.
O encontro, realizado na última semana no Parque Villa Lobos, em São Paulo, contou com cerca de 300 inscritos de vários Estados, como Roraima e Santa Catarina. Além disso, a estimativa é que milhares de pessoas tenham dado uma passadinha na exposição de fotos e na feira de produtos e serviços que ocorreram paralelamente às atividades do Encontro – somente no primeiro dia calcula-se que, por lá, passaram cinco mil pessoas. “Tivemos 20% de aumento no número de inscritos nas atividades e a feira, de modo geral, foi uma grande evolução para o encontro e para a prática de birdwatching”, diz Guto Carvalho, organizador do evento.
Assim como no ano passado, o Avistar 2008 foi focado no tema da conservação. O diferencial, segundo o organizador, é que várias atividades, como os mini-cursos, foram realizadas de forma mais aprofundada, com mais tempo, melhor estrutura e saídas de campo.
Consolidação dos passos
Em um contexto de expansão, tudo adquire importância. As mesas –redondas sobre Clubes de Observação, por exemplo, voltaram a salientar, como nos anos anteriores, que a falta de adeptos e a baixa assiduidade de seus membros ainda é um entrave para o desenvolvimento da atividade. No entanto, eles servem de ponto de referência e “elo de ligação” entre o mundo acadêmico e os leigos no assunto. “Há alguns anos, o cidadãos comuns não tinham informação nenhuma sobre a ornitologia. A primeira relação entre as pessoas e aves se deu com estrangeiros, depois com curadores de museus e, na década de 60 e 70, com os primeiros professores brasileiros especializados em ornitologia. Hoje o quadro é diferente”, diz Luiz Fernando Figueiredo, um dos fundadores do Centro de Estudos Ornitológicos (CEO).
Quem também começa a voltar seu olhar para os pássaros é o próprio governo federal. O Plano Nacional do Turismo, criado em 2003, incluiu a atividade de observação de aves em sua última revisão, feita no ano passado. Entre os 65 destinos “indutores do desenvolvimento” especificados pelo Ministério do Turismo, oito incluem a atividade de birdwatching. O debate realizado com representantes do poder federal, no entanto, mostrou que muita coisa ainda precisa ser revisada: alguns dos destinos escolhidos pela pasta, como os Lençóis Maranhenses, não são adequados à observação. “As áreas foram definidas pelos próprios Estados, mas sabemos que ainda há uma lacuna de comunicação que precisa ser preenchida. Precisamos dialogar com especialistas para revistar a lista”, diz Jurema Monteiro, coordenadora – geral de segmentação do Ministério do Turismo.
O mercado editorial é outro setor que ainda precisa de “ajustes” na área de birdwatching. Apesar de ser um nicho em expansão, dificuldades como erros de revisão e conteúdo encontrados nas publicações existentes precisam ser superadas. Para os debatedores da mesa-redonda “Mercado Editorial”, no entanto, tais entraves não são motivos para desânimo. “O público [para o segmento] é silencioso e numeroso”, diz Deodato Souza, autor do primeiro guia de campo de espécies brasileiras e pioneiro na criação de uma editora voltada à ornitologia.
Olhar preservacionista
Observar pássaros é mais do que focar em apenas uma espécie. O observador de aves, por suas próprias características, contribuiu para a conservação da área de ocorrência do bichinho avistado. Segundo Joaquim Maia, analista ambiental do Instituto Chico Mendes de chefe do Parque Nacional da Serra da Canastra, esta contribuição se dá por vários fatores, como o comportamento preservacionista, a atuação como “fiscalizador” das condições ambientais do local e pelo fato de o birdwatcher fornecer informações que, posteriormente, podem ser usadas como argumentos para avanços na implantação de unidades de conservação. “A prática de birdwatching ainda propicia um desenvolvimento econômico de baixo impacto”, defende Maia.
Mas, como apenas a atitude pessoal dos observadores não basta para preservar os biomas brasileiros, certos programas de manejo já adotam o título de bird-friendly, ou seja, manejos não agressivos às aves. Este é o caso da produção pecuária em campos nativos nos pampas gaúchos e as “cabrucas” no sul da Bahia, sistema tradicional de plantio de cacau. Braço da certificação orgânica, o selo bird-friendly ainda é pouco conhecido entre agricultores e falta especialização na área para ambos os lados, tanto do produtor como do pesquisador. “São vários os desafios. A gente precisa crescer muito no que se refere à educação ambiental ou como funcionam os processos ecológicos. Falta informação de uma forma geral e uma formação ambiental e aí não só do produtor, acho que da sociedade de uma forma geral”, diz Patrícia Ruggiero, mestre em ecologia pela USP e gerente do Projeto Corredor Una-Lontras, realizado no sul do Estado baiano pela organização SAVE Brasil.
Além das discussões teóricas, o Avistar 2008 teve atividades práticas e saídas a campo. Foi assim, por exemplo, com os cursos de observação para iniciantes, as oficinas de desenho de aves, digiscoping – técnica de fotografia com uso da luneta – e de fotografia de aves, ministrado por Luis Cláudio Marigo, fotógrafo de natureza há mais de 30 anos. Neste último, Marigo ensinou técnicas de composição, enquadramento, iluminação, aproximação e uso de equipamento desta prática tão associada à observação. “O primeiro critério para avaliar de uma foto é boa ou não é subjetivo. Foto boa é aquela que me toca o coração”, diz.
As viagens de observação são um atrativo não só para amantes da prática de birdwatching, mas também às agências de turismo especializado, que só tendem a lucrar com o crescimento do interesse pela prática. Durante o Avistar, foram para o mato, orientados pela agência Trip On Jeep, parceira da organização do evento, os participantes do mini-curso sobre observação de aves de rapina, ministrado pelo biólogo Jorge Albuquerque, e os interessados em avistar guarás e aves do mangue em Cubatão, além de outras saídas.
O Avistar ainda contou com uma gincana de cantos de pássaros, com ações paralelas para o público infantil e outras realizadas no Parque Ibirapuera e no Sesc Pinheiros. Teve até uma palestra sobre observação de onças. A programação do IV Encontro Brasileiro de Observação de Aves, previsto para o próximo ano, já começa a ser discutida em fóruns online de observadores. Entre os futuros pontos a serem debatidos estão a organização do segmento, o direito de fotografar em áreas públicas e o direito à paisagem.
Confira abaixo a entrevista com Fernando Straube, um dos criadores da OrnitoBR e ornitólogo da Sociedade Fritz Müller.
Como está o cenário da observação de aves hoje no Brasil? Mudou alguma coisa nos últimos anos?
Fernando Straube – Eu acompanhei uma parte significativa da observação de aves no Brasil. Não acompanhei ela toda porque começou na década de 70, mas participei do 1° núcleo de observadores de aves do Paraná, isso em 1982. Naquele tempo éramos um grupo muito pequeno, no Brasil inteiro não tinha 50 pessoas que faziam observação de aves. Então, o que pode parecer um crescimento pequeno não é pequeno, porque ele começou do quase zero. Hoje em dia devem ser milhares, a gente até já se perdeu na quantidade de observadores de aves.
Vocês têm uma estimativa de números?
Straube – Não, não existe nenhuma estimativa, mas se você for considerar que tem um grupo de umas 300 pessoas participando desse encontro, que vieram para São Paulo exclusivamente para isso… Não digo que tenhamos 200 observadores de aves em São Paulo, eu até acho que seja mais do que isso, mas é um indicativo importante de que isso é um grupo que está crescendo absurdamente.
Há um levantamento de quantos observadores de aves são biólogos ou ligados à biologia e quantos são apenas interessados?
Straube – Eu diria que mais ou menos metade é ligado de alguma maneira com a ornitologia, então pode ser um prestador de serviços no campo da consultoria, um professor de universidade ou um estudante de pós-graduação. Esses são mais ou menos 50%. Os outros 50% são os leigos, aqueles que gostam de fazer a observação de aves pelo simples prazer de contemplar a natureza. Isso é uma coisa espetacular, porque dentro dos grupos da história natural como um todo não existe essa conexão com o público leigo. Você não vê um grupo de observadores de insetos, de moluscos ou de répteis, não existe. Então as aves têm essa possibilidade maravilhosa que está afinal sendo preenchida e explorada de uma maneira bem interessante.
O que ainda precisa melhorar na prática de observação de aves?
Straube – É necessário acesso à mídia. Eu ainda vejo que a mídia é ainda muito pouco explorada, não sei se é por causa dos próprios objetivos do que nós conhecemos hoje como mídia ou se é porque não existe um espaço aberto para usar isso como ferramenta. Mas isso é um assunto que precisa ser constantemente lembrado, constantemente tratado. Você precisa penetração tanto no campo da educação… é necessário criar uma observação de aves como um método de ensino nas ciências. Não digo como disciplina, porque o sistema curricular já é uma coisa muito hermética, fechada, mas como uma ferramenta de ensino. E outros mecanismos de mídia. Enquanto você vê embalagens de chiclete com figuras do pokemom ou de outras entidades mitológicas muitas delas horríveis é triste saber que nossa natureza está sendo destruída pelo simples desconhecimento das pessoas e que elas não têm direito a ter acesso a essa informação e que poderiam ter. Bastava ter um pouquinho de responsabilidade dessas pessoas que fazem embalagens. Debatemos um pouco isso o ano passado que é a possibilidade de ocupar nichos editoriais que não são explorados, que vão muito além da televisão e dos jornais e revistas.
De que maneira a prática de birdwatching colabora para a preservação?
Straube – As aves têm características muito especiais, elas são aprovadas pela população. Elas não têm aquele sentido que é da cobra, do inseto que é transmissor de doenças, da aranha que vai morder a criança. Logicamente que são todas idéias exageradas, criadas por um folclore que não deveria existir, mas as aves têm um espaço muito especial na relação do homem com a natureza, porque elas são personificações da liberdade, da beleza, dos sons agradáveis, então elas fazem uma ponte muito importante com o ser humano.
Como está hoje a questão da certificação bird-friendly?
Straube – Existe muito exagero, então por exemplo, hoje em dia, apesar de nós não termos a mínima noção do efeito que algumas atividades ligadas à observação de aves causam, nós já temos normas, como é o caso do playback. Em alguns lugares o playback é proibido, sendo que nem os próprios observadores dispõem de informações se efetivamente é uma atividade perniciosa. Eu acredito que o bird-friendly tem que ser tratado com bastante cautela, porque antes ele pode ser tratado como um mecanismo de obstáculo de crescimento da atividade de observação de aves. A gente também sabe que existem normas para visitação de parques nacionais que proíbem as pessoas a irem a determinados lugares. Mas os observadores de aves precisam ir até esses lugares.
Mas existe a certificação bird-friendly para lavouras, por exemplo, técnicas de plantio que sejam amigáveis aos pássaros e que, nesse sentido, são positivas, não?
Straube – Bird-friendly é uma situação em que você pode conviver com as aves, mas ele também tem algumas limitações na prática. Você vê uma unidade de conservação que protege as aves, ela pode ter um monte de limitações para a pessoa fazendo com que ela não seja autorizada a visitar esses lugares, não pode usar um playback para atrair. É claro que é muito provável, por simples intuição, que o playback em exagero pode causar algum tipo de problema à ave, principalmente se ela for territorial, porque é o mesmo que você ficar ofendendo, xingando ela o dia inteiro. Mas esse do playback é apenas um detalhezinho muito pequeno. Talvez eu tenha focado somente nesse ponto, mas você tratou muito bem, porque as ações de bird-friendly são importantes no sentido de que criar mecanismos de proteção às aves ou sistemas agrícolas ou de pecuária que sejam importantes para manter a riqueza das espécies, você também vai agir na natureza como um todo. Então não é só bird-friendly, é nature-friendly, que acaba sendo um trunfo muito importante para as aves, que coincide com aquela questão da educação. Porque se você considera que as aves são um mecanismo importante para a educação, você também pode considerá-las como um mecanismo para a conservação, usando-as como uma ponte que vai se refletir na natureza como um todo.
Aqui no Brasil vocês encontram muitas dificuldades para praticar a observação?
Straube – Não. Não, ainda. Por isso que eu acho que isso deve ser bastante discutido, antes que comece a existir, porque a gente sabe que no Brasil muitas vezes se criam normas em cima de coisas que não são problemas, então parece que é uma cultura baseada no princípio da precaução. “Ah, será que vai acontecer tal coisa, será que vai passar um furacão nessa cidade? Então é obrigatório que todos blindem suas casas”, é mais ou menos por aí.
Aqui existem muitas reservas que proíbem playback?
Straube – A rigor, eu conheço uma que regulamenta, não proíbe, e existem outras que aplicam essa norma muitas vezes sem saber porque ela foi criada. Até tem a história de um colega meu que em uma reserva no Espírito Santo ele foi proibido de fazer playback e quando foi perguntar por que, o responsável disse que era porque um playback era muito mais perigoso que uma espingarda. Com qual base uma pessoa formula isso? Provavelmente tem toda uma mitologia que se criou. É claro que é necessário que se faça pesquisa, que se conheça se efetivamente o playblack pode ser uma coisa prejudicial às aves, mas não vamos começar a criar normas antes de saber se isso realmente acontece.
Como a era digital influenciou na prática de birdwatching?
Straube – Influenciou maravilhosamente bem. Porque antigamente a gente era escravo de livros, a gente só tinha como recurso usar o livro pra fazer a observação de aves e um binóculo para comparar e fazer um desenho. Hoje as opções digitais vão se estender desde a documentação desses registros, você vai continuar fazendo o mesmo desenho que você fazia antes, mas você vai enriquecer as tuas informações com fotografias, com sons e todos esses desdobramentos que existem depois, que é a escrita, a forma de divulgação. Se a gente fala em questão digital, a gente fala em internet. Não tenho a menor dúvida que ajudou a popularizar e vai ajudar mais ainda, especialmente por incluir nesse viés a parte sonora, visual e comunicativa, que são três aspectos importantíssimos.
O que te motiva a observar pássaros, ficar o dia inteiro no meio do mato para ver um passarinho?
Straube – Depende da pessoa. Na minha situação, eu nunca pensei a fundo porque eu sinto aquele tipo de coisa, porque efetivamente é um comportamento estranho pra quem ainda não viu. Eu observo a ave e sinto um negócio, uma sensação especial, você fica aguardando algum comportamento especial que ela tenha, algum canto, até a questão de previsão, será que ele vai andar para lá…são esses pequenos prazeres que fazem a observação se transformar num prazer muito grande, as incertezas, as dúvidas. É um complexo de sensações misturadas.
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