São Paulo – O incêndio que destruiu o acervo científico do Butantan, na manhã do último sábado, representou uma perda irreparável não apenas para o próprio Instituto, mas também para outras instituições de pesquisa. O Butantan armazenava exemplares emprestados de outras instituições, como os museus de zoologia de Londres, Paris e da Universidade de São Paulo (USP). Livros raros também se foram para sempre.
O levantamento oficial sobre as perdas ainda não começou, mas já se sabe que a maior coleção de cobras da região neotropical foi perdida. Iniciada há 120 anos, a coleção tinha cerca de 85 mil cobras, de centenas de espécies, além de cerca de 450 mil exemplares de aranhas e escorpiões.
Entre os milhares de animais incinerados estavam centenas de “tipos”, que são os primeiros exemplares usados para a descrição de uma espécie e que se torna a referência para ela. Toda vez que um pesquisador quiser confrontar dados, é ao “tipo” que ele vai recorrer. Segundo Hussam Zaher, diretor do Museu de Zoologia da USP, cerca de 30 % dos “tipos” de serpentes foram perdidos no incêndio.
Além disso, muitos dos animais queimados eram exemplares únicos de espécies raras ou já extintas, como a Corallus cropanii, espécie de serpente endêmica do Estado de São Paulo. Atualmente, havia apenas quatro exemplares do animal, três deles estavam no Butantan. Além da C. cropanni, exemplares raros dos gêneros Sordellina, Gomesophis e Siphlophis se foram.
Histórico da ocupação
Outra coleção perdida foi a de serpentes do gênero Thamnodynastes, que estava emprestada do Museu da USP. O Butantan também tinha coleções de serpentes emprestadas do Museu Paraense Emílio Goeldi e Museu Nacional, e de aracnídeos dos museus de zoologia de Paris e de Londres. Zaher lembra que o empréstimo para pesquisas é comum entre as instituições de pesquisa, do Brasil e exterior.
Miguel Trefaut Rodrigues, professor do Instituto de Biociências da USP, afirma que a coleção do Butantan não era importante apenas para o estudo das espécies. Ela contava a história das paisagens, principalmente de São Paulo. Conforme a ocupação do estado avançava, os exemplares capturados, representativos das diferentes regiões, eram levados pela população ao Butantan. “Eu ia fazer 16 anos quando comecei a trabalhar no Intituto e, naquela época, chegávamos a receber até duas mil cobras por mês. Hoje eles recebem uma a cada dez anos”, diz Trefaut, referindo-se à intensa perda na diversidade das espécies, devido à ocupação. “A coleção [do Butantan] era fundamental. Ela nunca mais poderá ser refeita”.
Trefaut destaca outra importância das coleções. É a partir delas que um estudo de campo tem início e que muitas novas descobertas são feitas. “Darwin jamais teria feito a teoria da evolução das espécies se não tivesse se debruçado sobre as coleções dos museus”, diz.
Além dos milhares de exemplares de animais que se perderam com o fogo, centenas de livros também foram consumidos pelas chamas. Francisco Franco, curador da coleção do Butantan há dez anos, havia levado ao prédio que pegou fogo toda sua biblioteca, que incluía livros raros e antigos. Entre eles estava o raríssimo livro “Erpetologie General” ou “Histoire Naturelle complete des Reptiles”, de Duméril, anotações de Vital Brasil e os próprios livros de registros, que contavam os 120 anos de pesquisa do Instituto.
Entenda o que aconteceu
O fogo que atingiu o prédio em que ficava o arquivo científico do Butantan começou por volta das 7 horas do sábado. A suspeita inicial é que o incêndio tenha sido causado por um curto-circuito ou sobrecarga elétrica. A chave geral do Instituto foi desligada na noite de sexta para sábado, para trabalhos de manutenção. A energia foi religada no início da manhã e, pouco depois, o fogo começou.
O acervo ficava em um galpão de 1 mil metros quadrados, construído na década de 1970 e reformado há dez anos. Mesmo com a reforma, o prédio não tinha nenhum sistema mais sofisticado de detecção ou combate a incêndios. Nem extintores ou hidrante havia no local. A rua principal que dá acesso ao prédio, um dos mais distantes da entrada do Butantan, foi fechada com um canteiro, o que dificultou a chegada dos carros dos Bombeiros.
Do momento em que o fogo foi detectado pelos vigilantes, por volta das 7h45, segundo nota oficial do Instituto, até a chegada dos Bombeiros, passaram-se apenas cerca de 10 minutos, o suficiente para que quase toda coleção fosse destruída. Segundo os Bombeiros, como as amostras são armazenadas em álcool, criou-se uma reação em cadeia. À medida que os potes esquentavam com o calor e estouravam, o álcool se espalhava, aumentando a superfície do fogo, fazendo com que mais áreas fossem atingidas.
Logo após o ocorrido, o Butantan divulgou uma nota dizendo que “segundo informações preliminares prestadas pelos Bombeiros, não havia no prédio qualquer problema relacionado às instalações que possa ter originado o incêndio”. O laudo final da perícia técnica, no entanto, deve demorar ainda um mês para ser concluído.
“Tragédia anunciada”
As más condições de conservação do acervo do Butantan, segundo pesquisadores, se repetem em outros museus. Em nota divulgada neste domingo, os pesquisadores Hussam Zaher e Miguel Trefaut Rodrigues alertam que o Museu de Zoologia da USP, Museu Nacional da UFRJ e Museu Goeldi, no Pará, também estão em condições precárias. “É fútil falar em preservar a biodiversidade se não assumirmos que nossos museus precisam de condições adequadas para que seu patrimônio não encontre o mesmo destino das coleções do Butantan”, diz a nota.
Segundo Trefaut, os pesquisadores esperam que a tragédia no instituto paulistano sirva de lição. “A comunidade científica está chocada. O que vamos fazer agora é tentar sensibilizar os órgãos do governo para que haja um investimento maciço [em melhorias nos prédios dos museus]. As coleções não são importantes apenas para a biologia. Também o são para a medicina, a física, a química… Então deveria haver um esforço interministerial para melhorar a condição nos vários institutos de pesquisa”, defendeu o pesquisador.
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