Vida de montanhista não é fácil. Excursão programada, equipamentos nas costas, condições de tempo favoráveis e, mesmo com tudo em cima, há sempre o risco de encontrar um portão fechado pela frente. Pensado para solucionar um verdadeiro drama da acessibilidade, um projeto de lei quer garantir livre trânsito em áreas naturais de interesse público, como montanhas, mesmo quando estão dentro de propriedades privadas.
Em tramitação na Câmara dos Deputados, o projeto, de autoria do deputado Fernando Gabeira (PV/RJ), pretende proteger paredes rochosas, travessias de escalada, trilhas, cavernas, rios e cachoeiras, a exemplo do que ocorre com as praias, da proibição de entrada por donos de casas, condomínios, hotéis ou restaurantes. Pelo texto, fica reservada aos proprietários a definição dos limites das trilhas, de forma a manter a passagem e preservar a área privada e aos trilheiros, ou seja, o dever de zelar pelo caminho.
A proposta é pioneira em um continente onde há países com tradição em esportes de aventura, como Estados Unidos e Canadá, que sofrem do mesmo problema. Como inspiração, um projeto semelhante passou na Inglaterra em 2000, o chamado CRoW Act (The Countryside and Rights of Way Act). Sua aprovação só veio graças a uma reação em massa da população inglesa contra as proibições de acesso a trilhas do país.
“Tomei conhecimento do CRoW Act e chamei a atenção dos meios de escalada no Rio de Janeiro para a existência da lei inglesa”, conta André Ilha, diretor do Instituto Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro (INEA) e escalador. “O deputado Fernando Gabeira ouviu a sugestão e idealizou o projeto, que, em resumo, busca assegurar que as pessoas tenham contato com os atrativos naturais de seu país”, diz Ilha.
Bernardo Collares, presidente da Federação de Montanhismo do Estado do Rio de Janeiro (FEMERJ), garante que o grande problema hoje do mundo da escalada é o de acesso às montanhas. “Nossa maior preocupação é que a quantidade enorme de restrições possa um dia acabar com a prática do montanhismo, ou de outras atividades ao ar livre”, afirma Collares.
As barreiras não se restringem a placas de proibido ultrapassar. Há relatos de todo tipo de violência contra montanhistas, desde maus-tratos verbais, até pedras e tiros de revólver. “No meio de uma escalada em uma pedra na Praia da Joatinga, no Rio de Janeiro, em área pública, o dono de uma casa acima apareceu reivindicando que aquela propriedade era dele. Um segundo homem sacou um revólver e chegou a atirar, até ser impedido por um terceiro”, conta André Ilha. “É o resultado de um misto de insegurança e prepotência”, conclui.
Do outro lado da moeda, proprietários usam o argumento do medo da criminalidade, principalmente em grandes cidades, e a responsabilidade pela segurança em caso de acidentes com alguém esportista. “No Brasil, a escalada acontece desde o início do século XX e nunca nenhum montanhista processou alguém por ter sofrido um acidente, ou se perdido. Todos conhecem os riscos”, garante Kika Bradford, coordenadora do Programa de Acesso às Montanhas, da FEMERJ, criado há cinco anos para cuidar do tema.
Entre os deveres deste programa está intermediar as negociações com os donos de áreas interditadas, jeito encontrado por trilheiros amadores ou profissionais para seguir com o esporte. “Hoje é tudo na base da conversa”, conta Bernardo Collares. “Entramos em acordo sobre os horários e até com a prática de deixar uma contribuição financeira para que os proprietários cuidem das trilhas”. Cordialidade é outro segredo que Collares ressalta: “O pessoal sai da capital para escalar no interior e esquece que deve dar bom dia para os moradores da região. É preciso criar uma relação de vizinhança”, conclui.
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* Juliana Tinoco é jornalista em São Paulo.
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