Vila Rio Pardo (RO) – “Imagine um bom futuro para a Floresta Nacional Bom Futuro”, propõe o jovem biológo, fazendo trocadilho, logo que partimos de Porto Velho às seis da manhã. Wilhan Assunção, que há dois anos é analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), tem mesmo que despertar todos os dias otimista. Sua luta diária é tentar dar um final feliz à história de destruição e descaso de uma das mais problemáticas unidades de conservação do Brasil.
A 180 quilômetros da capital de Rondônia, a flona é um emblemático caso de área que ficou anos e anos protegida no papel. Dos 280 mil hectares de floresta da sua demarcação original, em 1988, 28% foram desmatados, em um processo de ocupação ilegal que foi se acentuando ao longo de duas décadas (ver Histórico Flona Bom Futuro abaixo).
Os primeiros colonos chegaram atrás de madeira e terra nos anos 90. Na década seguinte, a grilagem e o incentivo à invasão do lugar por políticos e fazendeiros da região foram mais agressivos: estradas cladendestinas abertas e uma vila chamada Rio Pardo, base de madeireiros, pecuaristas e posseiros, foi levantada. Em 2008, um quadro alarmante: mais de 40 mil bovinos circulando por quilômetros de pastagens que tomaram o espaço da mata.
Mas o biólogo no volante me levava para conhecer a Bom Futuro hoje. Com cerca de 65% da sua área reduzida, decorrente de muita discussão e conflitos, e de um polêmico escambo entre os governos federal e estadual em 2009: a desafetação da unidade em troca da liberação da licença de instalação do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira. Estava indo conhecer a flona após a Operação Terra Nova, que se iniciou em maio do mesmo ano, com o objetivo de recuperar a gestão do lugar pelo poder público.
Terra Nova
Adentramos, um ano e meio depois da operação, ao que sobrou da floresta nacional, com 12% do seu território sobreposto a Terra Indígena Karitiana. A grande parte da área invadidada agora está sendo legalizada, através do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Os invasores ilegais e as cabeças de gado que ficaram na área de proteção, depois da sua desafetação, foram retirados em diversas ações lideradas pelo ICMBio, e em parceria com o Exército, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a Polícia Militar Ambiental, a Força Nacional, e outras instituições.
Durante os primeiros três meses da Terra Nova, foram lavrados cerca de 400 notificações para retirada do gado, e mais de 100 Autos de Infração, totalizando cerca de 60 milhões de reais em multas. Também foram instaladas bases operativas e barreiras nos seus principais acessos, para evitar o furto de madeira e a entrada de bois e homens.
“Foi muito difícil, o Estado foi ausente por muito tempo. Tinha gente vivendo há mais de 10 anos aqui. Tiveram filhos, uma vida. Difícil ainda é. Somos muito hostilizados.” conta Wilhan, um pouco antes de pararmos o carro e iniciarmos um papo com um homem apelidado de Ceará. “Eu tinha 47 cabeças de gado, mais cavalo, porco e galinha. Aguentei o que pude, mas tive que me retirar”, explica Francisco Rodrigues, que há sete anos comprou uma terra dentro da Flona de um grileiro por 500 reais. Ceará vive atualmente fora da unidade, comprando e vendendo boi, e esperando a documentação do Incra para voltar a pastorar. “Qualquer pedaço de terra que me derem, fico satisfeito, mas sei que nunca será do mesmo tamanho da que eu tinha”. Duzentos hectares, sendo 40 desmatados.
Um dos projetos atuais do ICMbio na Flona é reflorestar 10 hectares que eram do Ceará para combater o crescimento de gramíneas. “É um experimento para recuperarmos os terrenos mais degradados. Nas partes que já estão em fase de capoeira, não precisamos intervir”, explica o biólogo, mostrando extensas áreas de embaúba, uma das primeiras espécies que surgem no processo de regeneração da floresta.
Quem saiu, quem ficou, quem entra
Chegamos à base de operação na zona noroeste da Bom Futuro, mantida pelo ICMbio, e com agentes da Polícia Militar Ambiental. Foi a única que se manteve, das três montadas pelo Exército no auge da operação. Os policiais que fiscalizam a flona se revezam em turnos de duas semanas, entre a cidade e o acampamento no meio da selva.
Acompanhados de dois polícias do mato, fomos visitar as casas dos antigos invasores. O ICMbio precisa ter o levantamento de todas, pois agora tem gente que invade dizendo que mora há anos no lugar. “Querem se beneficiar com o programa de reassentamento das famílias retiradas”, explica Wilhan. Dias atrás da nossa visita, objetos suspeitos foram encontrados dentro de uma dessas residências. “Uma barraca, uma enxada, um terçado e um chapéu. Devia ser de um grileiro”, desconfia o PM Marcus Roberto Rodriguez.
Cerca de 30 famílias agricultoras ainda residem na Bom Futuro. Tendo em vista que vai ser necessário mais tempo para realocar estas pessoas para a parte desafetada, foi formulado, no ano passado, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), entre o ICMbio, o Estado de Rondônia, o Ministério Público Federal e os moradores que restaram. A proposta é que as famílias permaneçam por mais um ano na unidade, mas sem desenvolver a agricultura. Para que possam sobreviver, foi selecionada uma área comunitária, fora da flona, onde será permitido apenas o plantio de lavoura temporária, como arroz, milho e feijão.
Sorte ou azar
Deoni Davi, de 24 anos, Maria Madalena, de 16, e um bebê, de 4 meses, vivem em uma casa localizada na fronteira da área protegida com a desafetada. Para a sorte deles, ficaram na parte de fora da flona, e não precisaram se realocar. Nós também estávamos com sorte aquele dia. O carro enguiçou em um lugar ermo, a muitos quilômetros da base, mas encontramos, a poucos metros do ocorrido, a casa dessa atenciosa e jovem família.
Era meio-dia e pouco. Deoni emprestou sua moto para Wilhan buscar ajuda. Eu e os PMs ficamos esperando, e conversando. “Aqui tinha serviço quando estavam os grandes, Só na linha 15 (como são chamadas as vicinais da flona), eram duas fazendas derrubadas. A maioria do pessoal trabalhava para os irmãos Bambulins e para o Nego Mendes. Diária de 25 reais para roçar juquira, cavar buraco o dia todo no sol quente”, conta Deoni, lembrando dos fazendeiros que movimentavam o trabalho dentro da flona anos atrás. Deoni tem hoje nove bois, duas galinhas de angola, e cinco vacas nos seus 42 alqueires de terra. As vacas são para garantir o alimento da criança. Mas sua vontade é poder um dia investir pra valer em gado de leite: “É um dinheiro pingado, mas não seca. O Incra ia demarcar a nossa terra e dar financiamento, e até agora nada. Em 2010, produzi 125 sacas de café, mas foram três anos de sofrimento esperando. Tirei seis mil reais líquido. Se viesse algum recurso do governo para ajudar a nossa produção… Vou guardar essa vaca que está com bezerro para a onça não comer”.
Wilhan regressou três horas depois com outro carro, e mais dois policiais ambientais que resolveriam o nosso problema do veículo quebrado. A conversa estava boa, mas o tempo ficou curto. Precisávamos seguir até a vila Rio Pardo antes que a luz do dia terminasse.
Rio Pardo
Logo que chegamos ao centro urbano com cerca de 7 mil pessoas, e agora na zona desafetada, os moradores começaram a olhar torto. Paramos em um mercadinho para tomar um refresco e conheci Seu Messias Soarez, paranaense que mora desde 1983 em Rondônia: “Todo mundo aqui foi educado para derrubar a floresta. Antes a gente derrubava um lote em 90 dias e tinha direito a outro. Aí de repente muda tudo. Se o Estado falar para não derrubar mais e entregar uma cesta básica para gente, tudo bem. Aqui ninguém tem bolsa-família porque ninguém tem documento de terra”.
Quando o líder comunitário, de 43 anos, soube que eu era jornalista, e não funcionária do orgão federal ambiental, soltou: “Hoje, quando chega a caminhonete do ICMBio, com homens armados, fica todo mundo apreensivo. Se eles tivessem um escritório aqui para nos orientar, fazer a vistoria da queima do nosso roçado, seria melhor. Mas agora a vila não é mais sua responsabilidade…” Ano passado um veículo do Ibama, estacionado próximo à Rio Pardo, foi queimado como forma de protesto pela população local.
Seu Messias produz café e tem 40 cabeças de gado (já teve 100) em uma terra na área que foi liberada. Mas seu irmão e sua mulher têm seus lotes dentro da floresta nacional: “A vida da roça é a mais sofrida do país. Aqui o governo nunca ajudou. Se nós não pudermos plantar, como vamos continuar a nossa batalha?”A pergunta daquele senhor, quando o sol começava a se esconder no horizonte, tomou vários sentidos, e perdurou na minha cabeça durante todo o nosso caminho de volta por dentro da floresta.
Apressados para regressar à base de operação, e à Porto Velho, tivemos que frear o carro para não atropelar dois sapos que encenavam uma luta no meio da estrada de terra. O biológo do ICMBio explicou que era um ritual de sexualidade da espécie, onde os machos guerreiam para defender o seu território e obter a posse das fêmeas”. Batalhas. Talvez a mais difícil delas seja mesmo a do Wilhan, que acredita que é possível preservar o equilíbrio desse biodiverso ecossistema: “Sem ocupação de gado e extração de madeira, vejo um bom futuro para o lugar”.
Multimídia
Desmate em Rondônia
Veja também
Rondônia risca parques e reservas do mapa
Operação incompleta em Bom Futuro
Dramas do passado prejudicam Bom Futuro
Pelo PAC, até escambo de áreas protegidas
Leia também
A divulgação é o remédio
Na década de 1940, a farmacêutica Roche editou as Coleções Artísticas Roche, 210 prospectos com gravuras e textos de divulgação científica que acompanhavam os informes publicitários da marca →
Entrevista: ‘É do interesse da China apoiar os planos ambientais do Brasil’
Brasil pode ampliar a cooperação com a China para impulsionar sustentabilidade na diplomacia global, afirma Maiara Folly, da Plataforma CIPÓ →
Área de infraestrutura quer em janeiro a licença para explodir Pedral do Lourenço
Indígenas, quilombolas, ribeirinhos, peixes endêmicos e ameaçados de extinção serão afetadas pela obra, ligada à hidrovia exportadora →