Enviada especial a Açailândia, Maranhão – Piquiá de Baixo é um pequeno povoado onde vivem cerca de 300 famílias na zona rural de Açailândia, no sudoeste do Maranhão. Piquiá está morrendo. Os 1.100 moradores do vilarejo, localizado a 15 quilômetros do centro do município, respiram pó de ferro emitido pelas cinco siderúrgicas que recebem e processam o minério extraído em Carajás, no Pará. Muitos adoeceram e deixaram a cidade.
A história do povoado e seus moradores é o tema da série especial que começa a ser publicada hoje no site ((o)) eco. A reportagem visitou o vilarejo, caminhou entre as casas com telhados cobertos por poeira cinza, ouviu as buzinas e roncos dos caminhões da BR-222, e conversou com moradores, ambientalistas e representantes de movimentos locais sobre impactos ambientais e sociais graves.
O Maranhão integra o rol dos estados da Amazônia Legal, mas em Açailândia – a cidade do açaí – os poucos trechos remanescentes visíveis da floresta tropical estão cobertos pela poeira fina que deixa tudo escuro. Nas décadas de 1960 e 1970, a economia da região foi impulsionada pela extração de madeira, e hoje quase nada sobrou da mata.
Dá para ver a devastação por satélite (afaste o zoom e navegue para visualizar as áreas degradadas):
Desenvolvimento humano
Açailândia fica a 564 km de São Luís, tem 107.790 habitantes e, com sua produção de ferro gusa, é o município com terceiro maior Produto Interno Bruto (PIB) do Maranhão, atrás apenas da capital São Luís e de Imperatriz, a segunda cidade com mais habitantes do estado. Conforme o levantamento mais recente do Instituto Maranhense de Estudos Socioeconômicos e Cartográficos (Imesc), a economia do município gerou cerda de 1,6 bilhão de reais em 2011(8% do PIB de São Luís).
“Na frente de nossas casas passa a estrada de ferro Carajás, ao redor existem indústrias de ferro gusa e, do lado, o entreposto de minério da Vale. É triste morar num local onde todos têm chances de ter problemas respiratórios”
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Essa riqueza, porém, não é distribuída, como indicam os números do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, que aponta que um em cada dez moradores da cidade (10.12%) é extremamente pobre e um em cada quatro (25,17%) é pobre. No Índice de Desenvolvimento Humano do Município, a cidade tem desempenho de 0,672 . O IDH é uma medida comparativa usada para classificar países e municípios. O índice, que vai de 0 a 1, é composto a partir de dados de expectativa de vida ao nascer, educação e PIB per capita. Tido como um município de desenvolvimento médio, Açailândia se compara ao IDH da Palestina (0,670) e do Paraguai (0,669).
Açailândia guarda histórias como a de Joselma Alves de Oliveira, 37, professora que nasceu e cresceu em Piquiá de Baixo e hoje não tem esperanças em relação ao local. Ainda com os pais vivos e mãe de uma filha adolescente, seu maior sonho é que sua família se mude daqui.
“Na frente de nossas casas passa a estrada de ferro Carajás, ao redor existem indústrias de ferro gusa e, do lado, o entreposto de minério da Vale. É triste morar num local onde praticamente toda a população tem chance de ter doenças de pulmão, garganta e problemas respiratórios”, resume Joselma, a terceira de sete irmãos.
Na rota do minério
Piquiá fica na rota da indústria de ferro gusa nacional, uma das mais lucrativas do país. Todo o minério extraído nas minas de Carajás, explorado pela Vale, em Parauapebas (Pará) passa por Açailândia no caminho pela estrada de ferro até o porto de Itaqui, em São Luís do Maranhão, para suprir a crescente demanda mundial alavancada pelos países emergentes. Com extração de 240 milhões de toneladas de minério ao ano, a Vale é a maior companhia do mundo no setor.
Os números impressionam. Segundo o Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), Parauapebas é o principal município exportador do país, batendo novos recordes a cada trimestre. De janeiro a março deste ano, Parauapebas exportou US$ 2,217 bilhões.
Toda a produção de Carajás passa por Piquiá. Um trem passa atrás do povoado a cada 20 minutos e buzina, inclusive de madrugada. De todo o minério extraído, 7% é vendido para as indústrias guseiras instaladas no pólo industrial de Açailândia, e o restante, 93%, segue direto para o porto de São Luís. A produção de ferro gusa em Açailândia representa 11% da produção brasileira de gusa.
Além do barulho do trem, os moradores também enfrentam o ruído constante de freadas de caminhões pesados que cortam o povoado através da BR-222 – rodovia que liga Fortaleza (CE) à Marabá (PA), passando pelo Piauí e Maranhão. O barulho é suficiente para tirar o sono de qualquer um e os caminhões, carregados de carvão, cimento, brita e ferro gusa deixam para trás poeira, muita poeira. Das cinco siderúrgicas, ou “firmas”, como são chamadas pelos moradores locais, duas ficam logo atrás da casa de dona Angelita, de 62 anos, mãe de Joselma, a professora que nasceu em Piquiá de Baixo. Foi ela quem acolheu a reportagem por duas noites no povoado.
Dona Angelita
Muitos tentam, mas não é possível levar uma rotina normal. O ritmo de vida segue o compasso das buzinas do trem, dos escapes de chamas e fumaças das guseiras e das freadas dos caminhões carregados.
Localizada na BR-222, a casa de Angelita é a primeira a ser vista pelos que cruzam a rodovia federal. Nos fundos, a família costumava plantar mais de 30 pés de côco, goiaba, laranja, limão siciliano, carambola, manga, acerola, macaxeira e uma boa variedade de hortaliças. A casa de Angelita tem um ar nostálgico da chácara que foi no passado. Há pelo menos 10 anos, o terreno não serve mais para cultivo. Sua plantas estão cobertas por uma camada pegajosa de pó preto.
“A gente planta, embolam as coisas e (alimentos) morrem com facilidade. As pessoas aqui não aguentam, cada dia é um ruído, uma zoada (barulho) diferente”
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“A gente planta, embolam as coisas e (alimentos) morrem com facilidade. As pessoas aqui não aguentam, cada dia é um ruído, uma zoada (barulho) diferente”, conta ao apontar do quintal para as chaminés de duas siderúrgicas visíveis de sua casa.
Não são só as plantas que sofrem. Angelita reclama da falta de ar e de um “aperto no peito” e, há 10 anos, sua filha Joselma sofre com intensa irritação na garganta e inflamação nos ouvidos. Após casar-se, Joselma se mudou com o marido para Piquiá de Cima a 2 km da casa de sua mãe.
Anel de ferro
A pequena Piquiá de Baixo é cercada por um anel de ferro. Atrás da casa de Angelita, ficam as propriedades das indústrias de ferro gusa. O quintal da mãe de Joselma hoje divide a cerca dos fundos com a Viena Siderúrgica S/A e a Gusa Nordeste S/A.
À noite, não há estrelas em Piquiá – o clarão com luzes das indústrias toma conta do céu. A produção do ferro gusa não para. Clareiras, barulho e escapes de fumaça irrompem a madrugada. O verde da vegetação que restou e o rio que leva o mesmo nome da comunidade contrastam com o tom monocromático das casas, com paredes marrom de poeira da estrada e telhados da cor preta e acinzentada do chamado pó de ferro.
A vida é inviável em Piquiá. Não é possível respirar ar puro. “Tem dias que está insuportável. Na escola, os alunos e os professores ficam perturbados com o barulho, não dá para se concentrar em nada. Tem hora que dá uns estouros e cobre tudo de poluição. Parece que estão quebrando ferro, dói no ouvido”, diz Angelita que há quase 40 anos vive na comunidade.
Do Piauí, ela se mudou para o vilarejo com o marido João, em 12 de janeiro de 1975, após três anos de casados. O sogro já tinha um terreno na região e convenceu o casal a fazer a vida na cidade. Seu João, hoje com 64 anos e doente após ter sofrido um AVC, foi o primeiro vereador de Açailândia, entre 1982 e 1986, quando o município se emancipou de Imperatriz.
O chamado “progresso”
Como professora do primário, Angelita ensinou na escolinha municipal Almirante Barroso. Lecionou de 1997 até abril deste ano, quando teve que se ausentar para cuidar da casa e do marido enfermo. “Meu marido brigou demais na época contra a ideia de o pólo industrial se instalar no Piquiá”, lembra. A vida era boa em Piquiá, conta a moradora, com água abundante no rio e brejos que cortavam as propriedades.
Muita coisa mudou na região, relembra a mulher que testemunhou a história da degradação da comunidade. A energia chegou em fevereiro de 1981 e, com ela, o “progresso”. A BR-222 foi asfaltada no mesmo ano.
“Eu sabia que viria o progresso, mas não sabia que eram tão irresponsáveis de não ter nenhuma proteção ou de nos orientar. Quando vieram (empresas) para comprar as terras aqui só falavam nos benefícios, que viria trabalho e desenvolvimento”
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As empresas se instalaram na região após a construção da estrada de ferro Carajás que, desde 1985, começou a agitar a vida de vilarejos às margens da ferrovia. “Lembro da época que vieram para fazer o desmatamento, em julho de 1975, para a linha de trem (as obras começaram em 1982). Eu sabia que viria o progresso, mas não sabia que eram tão irresponsáveis de não ter nenhuma proteção ou de nos orientar. Quando vieram (empresas) para comprar as terras aqui só falavam nos benefícios, que viria trabalho e desenvolvimento”.
A primeira guseira a se instalar foi a Companhia Siderúrgica Vale do Pindaré, em 1984, do Grupo Queiroz Galvão, que montou na época um alojamento de operários da construção bem ao lado da casa de Angelita.
O pólo industrial de Açailândia contém cinco indústrias de ferro gusa – Viena Siderúrgica S/A, Siderúrgica do Maranhão S/A – SIMASA, Cia. Siderúrgica Vale do Pindaré, Ferro Gusa do Maranhão Ltda. – FERGUMAR, e Gusa Nordeste S/A. Elas processam o minério de ferro bruto e o transformam junto com o carvão vegetal em ferro gusa, uma matéria-prima para a produção do aço. São no total, 14 altos-fornos que precisam da água do rio Piquiá para seu resfriamento.
“As firmas chegavam e compravam as fazendas. Bem no lugar onde hoje é um dos altos-fornos da Viena ficava a casa da minha cunhada”, diz. O quintal de fundos tem 100 metros. Delimitado por uma cerca, o terreno das guseiras fica logo atrás. Ninguém mais pode se utilizar dos riachos que cortam as propriedades dos moradores, estão todos contaminados. Por eles escorre a água quente usada no esfriamento dos altos-fornos. “Não temos coragem de banhar no brejo aqui no meu quintal”, lamenta.
“A gente não acostuma não, filha…”
De cabelos longos e grisalhos e pele curtida do sol, Angelita está prestes a se aposentar. Altiva e enérgica, é ela quem cuida da casa de quatro cômodos onde sua família vive desde março de 1983. Sua casa abriga cinco pessoas e, até o início do ano, já chegaram a viver onze, entre filhos, genros e netos.
“Tem dias que sinto uma coceira e irritação quando cai o farelinho preto (pó de ferro). Já tem uns 12 anos que sinto isso. A gente não acostuma não, filha… A roupa no varal fica sempre cheia de furinhos de quando caem brasas das chaminés”.
Angelita limpa a casa diariamente e várias vezes por dia. Ela tem cuidado com a limpeza, está sempre com uma vassoura ou um espanador a tira colo. “A gente pensa que a casa está limpa, mas é só botar o pé no chão e passar o dedo nas coisas que fica preto. É só terminar de limpar e na mesma hora já fica sujo. Tem que cobrir tudo, a poeira cai no cabelo, na comida e na roupa”, descreve.
Se tivesse a oportunidade de deixar Piquiá, Angelita não pensaria duas vezes. Ela garante que teria ido embora. “Meu sonho é sair daqui e morar num lugar que a gente tenha uma vida digna. Viver num sufoco desse não representa dignidade para ninguém. Que deus me dê a chance de sair daqui com vida”.
Esta é a primeira reportagem da série especial Piquiá de Baixo, sobre a vida dos impactados ambientais da produção de ferro gusa no Maranhão.
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Isto é sintomático de exploração mineral, feita sem planejamento. As empresas (mineradora e fundições), poderiam remover os moradores dos locais mais atingidos,
E o poder público poderia fomentar o uso de filtros, para diminuir a suspensão do pó. Falta de respeito não atinge empresários e políticos. “Os incomodados que se mudem”. O Brasil é assim!