Aos 79 anos, Sylvia Earle não para. Ela passou a vida mergulhando nos mares do planeta, desde os tempos de criança, quando a família se mudou para a Flórida. Como ela conta, “foram milhares de horas debaixo d’água”, onde descobriu que explorar os seres marítimos é tão incrível quanto ler ficção científica. A carreira é longa e começou com um doutorado na Duke University, nos EUA, em 1966. Depois disso, ela passou por Harvard, foi curadora do programa de Ficologia da Academia de Ciências da Califórnia, pesquisadora da Universidade da Califórnia em Berkeley, e, em 1990, se tornou a primeira mulher a ocupar o cargo de cientista-líder da NOAA, a agência americana que estuda os oceanos e a atmosfera. Ao longo do caminho, bateu recordes de profundidade de mergulho e foi co-fundadora de uma empresa que desenvolvia sistemas robóticos para mergulho em grandes profundezas. Escreveu livros de divulgação da importância do oceano e ganhou o prêmio TED de 2009, o qual usou para criar a Mission Blue, uma organização devotada a criar áreas de proteção marítima. Mission Blue também é o nome de um documentário de 2014 sobre sua vida e campanha pela saúde dos mares. A paixão pelo fundo do oceano já lhe valeu o apelido de Sra. Profundidade (Her Deepness). Dona uma voz grave que destoa do corpo pequeno e do sorriso sempre aberto, ela foi uma das estrelas do Congresso Mundial de Parques da UICN, realizado em Sydney, Austrália. Lá, ela concedeu a ((o))eco a seguinte entrevista.
((o))eco: Como fazer as pessoas se interessarem pelos oceanos?
Você não pode se preocupar com algo que não conhece. O oceano é visto pelas pessoas como um lugar para se divertir, como fazer surf, passear de barco, pesca recreativa, extração de peixe, camarão, ostras, mariscos. É um lugar de onde se tira coisas. No entanto, os mares nos mantêm vivos e agora devemos devolver o favor. O oceano está em apuros, porque, em ignorância, jogamos coisas nele e levamos recursos que minam suas capacidades, inclusive aquelas necessárias à sobrevivência humana. Os mares geram oxigênio, estabilizam a temperatura e o clima. Hoje sabemos que o oceano é essencial ao suporte da vida da Terra. Como somos animais terrestres, fomos lentos em entender seus desígnios. Mas no século 20, e, agora, no 21, temos esta poder. Antes não dava mesmo para saber. Agora, podemos ver a Terra a partir do espaço, temos exploradores que podem ir às profundezas do mar, computadores que podem coletar informações e comunicar o que elas significam. Agora, sabemos. Se não formos capazes de cuidar dos mares, nada mais importa.
((o))eco: O que isso significa?
As pessoas precisam saber que os mares estão em apuros. Temos tempo, mas não muito, para reverter os danos que produzimos. Por exemplo, veja a acidificação dos mares. Estamos mudando a química do oceano pela produção excessiva de dióxido de carbono na atmosfera, advinda da queima de combustíveis fósseis. Isso não vai afetar só a temperatura global e o nível dos mares, mas também a sua natureza do mar. O ácido carbônico é formado quando o mar absorve um excesso de dióxido de carbono. Pequenos organismos marítimos absorvem dióxido de carbono através da fotossíntese, mas esta capacidade é limitada. O excesso se torna ácido carbônico e acidifica os mares. Somos nós a causa e isso também é um problema para nós mesmos. Não é um problema apenas dos peixes, corais e baleias. Precisamos tanto do oceano, quanto as criaturas que o habitam.
((o))eco: O que mudou nas águas do mundo?
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Ao redor do mundo, 50% dos recifes de coral se foram ou estão em declínio acentuado, e acabaram 90% das mais importantes espécies de peixes comerciais, entre elas tubarões, peixe-espada, atum, bacalhau, arenque e anchovas. Sumiram. Somos tão eficientes em matá-los, pegá-los, tirá-los das águas, que não nos damos conta de que há limites além dos quais não haverá mais peixes. Essa é a projeção para meados deste século, se continuarmos a utilizar meios destrutivos. A pesca por arrastão não pega só peixe, mas todo o ecossistema. É como tirar toda a fazenda, quando o que você quer são as maçãs das árvores. Se você tirar as árvores, acaba tudo. Arrastões de camarão ou vieiras limpam o oceano, para levar apenas um pequeno número de criaturas ao mercado. A preocupação é com esta forma de “mineração” do mar. Isso não significa que paremos de pescar, mas que devemos estar cientes das consequências. Estamos olhando para os benefícios sem calcular os custos.
((o))eco: O documentário Mission Blue mostra que você começou a mergulhar na Flórida. Como você compararia o Golfo do México que conheceu na década de 50 e a situação em que ele está hoje?
Há uma má notícia e uma boa notícia. A má é que acabou grande parte da vida marítima da região, retirada por tecnologias como linhas de anzóis com 50 ou 60 quilômetros de extensão e redes feitas de materiais que não existiam quando comecei a explorar os mares, capazes de apanhar seres minúsculos. Quando comecei a mergulhar a prospecção de petróleo estava começando. Agora, há dezenas de milhares de plataformas de petróleo no Golfo do México. Individualmente não fazem muita diferença, mas, somadas, alteram a composição química e a natureza do Golfo. Cada vazamento conta. Ocorreram alguns grandes, mas há um monte de pequenos derramamentos de óleo que vão se somando. A boa notícia é que ainda existem lugares com tubarões e grandes peixes muito procurados, embora não tantos quanto antes. Criou-se algum grau de proteção, há alguma recuperação de espécies tais como a garoupa-golias (Epinephelus itajara), que já foi abundante, mas foi tão exaurida que ganhou proteção total. Ela está começando a se recuperar.
((o))eco: Comparado a florestas, qual é a capacidade dos oceanos de se recuperarem?
Depende do que você está avaliando. Havia no Golfo do México e no Caribe uma espécie de foca, chamada foca-macaco, agora extinta. Em 1952, a última foi vista na região. Elas estavam lá quando eu era criança, mas nunca cheguei a avistá-las. Há uma espécie semelhante no Mediterrâneo, e outra relacionada no Havaí. Em ambos os lugares estão seriamente ameaçadas. Mas há esperança para os recifes de coral, se nós os protegermos já e pararmos a matança. Em locais onde medidas de proteção são tomadas a tempo eles ainda estão vivos e podem se recuperar. Mesmo em dois ou três anos os benefícios já são visíveis. Porém, em partes de Tampa Bay, onde houve destruição por dragagem, transformaram-se áreas de mangue em estacionamentos ou loteamentos. Não dá para trazer isso de volta, foi aniquilado. Mas as partes que permanecem, se você protegê-las e parar de pescar, fizer uma pausa, a chance de que retornem é boa. Talvez sejamos capazes de voltar a pescar alguma coisa no futuro. Mas, no momento, cada ostra e vieira contam, cada garoupa conta, qualquer quantidade de vegetação submarina é importante. Tudo isso é muito mais do que mercadoria.
((o))eco: Quais seriam exemplos de boa proteção marítima no mundo?
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Há muita inspiração que vem de pequenas nações insulares, como Palau, Ilhas Cook, Kiribachi e Nova Caledônia. Estes são países de pouca área de terra, mas que têm jurisdição sobre vastidões de oceano. Na Austrália, há uma outra Austrália que fica no mar. No Brasil, há um outro Brasil marítimo, levando em conta apenas a Zona Econômica Exclusiva. Existe um potencial para fazer um plano para este outro país. O Brasil tem jurisdição sobre esse grande oceano azul… Palau vê valor na proteção de seus tubarões. Eles pararam de matar tubarões em Palau. Um tubarão vivo é mais valioso do que um tubarão morto porque os turistas vêm para nadar com eles. Palau entende de que existe um valor de ecossistema nos tubarões, que eles são parte de um oceano funcional. Acabe com os tubarões e você interrompe o sistema todo, do mesmo jeito que, na terra, matar os grandes predadores arrebenta o sistema. Então, Palau proibiu a pesca em toda a sua zona econômica exclusiva como uma salvaguarda das suas zonas pesqueiras.
((o))eco: Como é possível valorar um ecossistema?
Precisamos levar em conta o valor de todo o sistema, em vez de valores extrativistas, de commodities. É preciso respeitar o valor da vida das criaturas que vivem lá. Ainda há tempo para fazer como a Austrália, que separou um terço da sua zona econômica exclusiva para ser parque. Essa é uma apólice de seguro contra o desconhecido, para as perguntas sem resposta. Porque nós não temos todas. Não sabemos tudo o que está lá, naquele oceano, estamos apenas começando a nomear a maior parte da vida que vive no fundo do mar da região. No Brasil, talvez milhares ou dezenas de milhares de espécies estão começando a ser descritas, pois grande parte da área ainda é inexplorada. Nós sabemos como matar coisas, mas não qual é a sua função natural que mantém os oceanos saudáveis. É como cortar uma floresta sem sequer olhar para as árvores.
((o))eco: Por que as pessoas se preocupam mais com florestas do que o oceano?
Elas não conhecem o problema. Para conhecê-lo é preciso mergulhar, o jeito que eu descobri os mares, passando milhares de horas debaixo d’água. Você começa a ver os peixes de maneira diferente. Eu os vejo como joias envoltas em corpos e cores milagrosas, com todas as suas formas e desenhos. As pessoas admiram os pássaros porque eles são belos. Os peixes também são belos, são animais extraordinários. Mesmo as águas-vivas. Quando as vemos na areia, são nada. Mas vê-las no oceano, em toda a sua glória… Não há nada mais magnífico do que estas criaturas do mar, e às vezes ainda não tem nem nome. Você mergulha e vê formas de células que brilham no escuro, elas piscam, espumam, brilham. Parece ficção científica, mas é real. Você assiste Avatar, o filme, com aquelas criaturas maravilhosas, loucas. O fundo do mar é assim também, guarda formas incríveis de vida. As pessoas precisam saber disso. Por isso é tão importante comunicar com filmes, com mergulho. Isso ajuda as pessoas a entenderem o que estão perdendo. Elas precisam ver.
((o))eco: Como proteger peixes e seres marítimos que se movem para fora de jurisdições dos países, para águas internacionais?
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É parecido com as aves. Algumas migram grandes distâncias, mas boa parte das criaturas do mar vive em uma área restrita, assim como muitos pássaros. Há pequenos peixes que não se movem um espaço maior do que se pode abraçar, exceto quando são bebês e flutuam através do plâncton, até, então, se estabelecerem em um espaço pequeno. Você olha para eles e encontra olhos brilhantes, barbatanas bonitas e cores. Parecem-se com flores. São magníficos e as pessoas não sabem. Se soubessem, ficariam tão extasiadas quanto os mergulhadores. É triste perder sua herança antes mesmo de conhecê-la. É triste ver a extração dos peixes, a matança, antes mesmo de saber o que eles fazem, como vivem ou qual a sua importância para o oceano.
((o))eco: E como lidar com as criaturas que amedrontam as pessoas?
Criaturas tal como …?
((o))eco: Tal como tubarões.
A coisa mais amedrontadora são as pessoas (risos). Nós tememos o que não conhecemos. Tubarões não devem ser temidos. Eles é que precisam ter medo de nós, que os matamos aos milhões todos os anos. De vez em quando, um tubarão curioso pode morder uma pessoa. Mas, a cada ano, talvez 5 ou 6 pessoas sejam mordidas seriamente por um tubarão. Do outro lado, os tubarões estão em sérios apuros por nossa causa. Se os tubarões entendessem o que estamos fazendo com eles, aí sim seriam perigosos.
((o))eco: O que aconteceria com os oceanos se não houvesse tubarões?
Nós já vimos o impacto nos oceanos da perda de 90% dos tubarões. Estamos vendo sistemas perturbados, uma interrupção das cadeias alimentares do oceano. Olhe para os recifes de coral, um dos seus problemas é que eles precisam dos peixes e vice-versa. Você pesca os peixes e os corais morrem, ou, então, tira os corais e os peixes morrem. Não é só o peixe-cirurgião que vive nos corais, os tubarões fazem parte desses ecossistemas. Precisamos recuperá-los, cuidar deles, para restaurar a saúde dos mares.
((o))eco: Quando essa conversa começou, falamos sobre como provocar nas pessoas comuns a paixão que os mergulhadores desenvolvem pelos oceanos. Como fazê-lo?
Dê um jeito de colocar as crianças no mar. O lema é: nenhuma criança deve ficar seca (risos). É isso aí. Isso vale para crianças de qualquer idade. Vá explorar os oceanos. Coloque uma máscara e pés-de-pato. Minha mãe começou a mergulhar aos 81 anos e disse que estava chateada comigo por não a ter convencido mais cedo. Eu bem que tentei, mas deveria ter insistido mais. E se você realmente não gosta de se molhar, vá a um aquário. De qualquer forma, não deixe de apreciar o oceano vivo. O oceano não é apenas feito de rochas e água, é um sistema cheio de vida e que, ao funcionar, nos mantêm vivos. Pense no oceano como um sistema que suporta a vida. Ele está em apuros, sofrendo com tudo o que colocamos e tiramos dele. Para garantir o nosso futuro, nossa saúde, nossa segurança, tudo aquilo que nos importa, é preciso cuidar do oceano, e não apenas considerá-lo como um lugar de onde se tira coisas.
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