17 a 21 de outubro de 2004 – Curitiba – Paraná
Marcos Sá Corrêa está cobrindo o IV Congresso de Unidades de Conservação para O Eco. Até quinta-feira, 21, além das reportagens, O Eco também publicará na íntegra, em formato PDF, as palestras mais relevantes do encontro à medida que forem sendo apresentadas.
Da platéia do IV Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, o Brasil que se vê esta semana não parece o mesmo que está nos jornais. Domingo, o país foi dormir ouvindo as últimas notícias sobre a nova capitulação do governo Lula à soja transgênica. E ali mesmo, no quilométrico centro de convenções da Estação Embratel, onde quase tudo parece maior do que a realidade, a ministra Marina Silva, multiplicada por dois imensos telões, havia lido um discurso sobre a política oficial de Meio Ambiente, com o tom de quem acabava de ver pela primeira vez aquele maço de papel em sua frente.
Mas na segunda-feira, quando a sala se encheu de novo, às oito da manhã, quem estava ao microfone era o historiador americano Alfred Runte. E o ambiente era outro. “Deixem o mundo inteiro com inveja de vocês”, disse ele. Como? Fazendo o que os Estados Unidos não fizeram. Isto é, parques nacionais que sejam mais do que migalhas de natureza, marcando a passagem da civilização pelo território desfigurado. Por quê? Porque só um povo que ainda tem mais da metade da Amazônia preservada pode dar um passo desse tamanho. “Sejam visionários”, ele sugeriu aos brasileiros. “Dêem a vocês mesmos a chance de serem fonte de inspiração para o resto do planeta”.
Claro que um forasteiro não pode vir aqui, sem mais nem menos, dizer coisas desse teor sem estar imunizado contra desconfianças. Mas Runte trouxe o atestado de vacina. Essa é a primeira vez que põe os pés no Brasil. Mas seu pai, um veterano da I Guerra Mundial que migrou da Alemanha depois de se desentender com as tropas de ocupação, morou cinco anos em São Paulo, antes de se juntar à família nos Estados Unidos. Lá, sua mãe cresceu numa fazenda, onde mais tarde brotou uma incorporação imobiliária.
“Boa pergunta”, Runte dizia, cada vez que lhe chegava uma arapuca com ponto de interrogação. Não é estranho que os americanos, depois de enriquecerem devastando suas florestas, queiram ver de pé as árvores dos países pobres? “Vivo dizendo aos governos de meu próprio país que não há nenhuma incompatibilidade entre o desenvolvimento e a conservação”, ele respondeu. A seu ver, a destruição da natureza só serve para encher o bolso de quem quer ganhar dinheiro com baixo investimento em tecnologia. Com essa conversa de salvar a Amazônia, o governo de Washington, que sequer assinou o Protocolo de Kyoto, não estaria querendo nos empurrar a conta de sua poluição industrial? “Assim é que eu gosto”, ele respondeu. “Adoro vocês. E vou votar em John Kerry. Nós também mal agüentamos esperar pela mudança”.
Acabou aplaudido, depois de agradecer a chance de “ver tantos rostos jovens” reunidos numa mesma sala. No auditório, onde havia pelo menos 1.100 pessoas, havia cerca de 650 estudantes. Nesta quarta edição, o Congresso de Unidades de Conservação está maior do que nunca. Tem mais de 1.700 inscritos. Até quinta-feira, espalha-se por cinco salões, onde conferências simultâneas disputam o público das oito da manhã às sete da tarde. Só a edição das palestras sobre assuntos técnicos resultou num volume em papel reciclado que, sob o título Anais, ocupa 720 páginas de letras miúdas. Fora as palestras sobre “Atualidades e Tendências”, como a de Runte, que exigiram outro livro de 198 páginas, nos mesmos tipos quase ilegíveis. “Estou acostumado a salas de aula, mas é a primeira vez que vejo um auditório deste tamanho”, disse do palco o economista Carlos Eduardo Frickmann Young, da UFRJ. “Nunca vi tanta gente simpática num cogresso tão bem organizado”, arrematou pouco depois o economista Jorge Madeira Nogueira, professor da UnB, que acabara de se apresentar como mangueirense.
Produzido pela Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação e pela Fundação O Boticário, com um séquito de patrocinadores que mistura as ONGs The Nature Conservancy e Conservation International, a empresa Itaipu Binacional e o Ministério do Meio Ambiente, ele trouxe esta semana ao Brasil conferencistas dos Estados Unidos, da Inglaterra, da Holanda, da Austrália e da Nova Zelândia, além de ambientalistas do Brasil inteiro. Misturada, essa gente forma uma platéia divertida, onde ternos escuros e jaquetas de guarda-parque se alinham nas mesmas fileiras de poltronas e um brasileiro se arrisca a falar inglês com outro. Há dezenas de estandes onde, lado a lado, pequenas ONGs nacionais procuram financiadores e grandes ONGs internacionais procuram financiados. A cada intervalo, aparecem nos corredores participantes que poderiam sair dali para o Pantanal sem trocar de roupa. Aliás, isso é o que eles provavelmente farão.
Bastou o primeiro dia de congresso para mostrar que há mais novidades em conservação do que se supõe no noticiário ambiental no governo Lula. Do palco onde a ministra Marina Silva havia concluído na véspera que sem desenvolvimento não há conservação, o economista Carlos Eduardo Young mostrou que o desmatamento não gera empregos, no máximo “permite a acomodação temporária de conflitos rurais”. Embora o país acredite que progresso é “limpar o mato”, as estatísticas dizem que a violência aumenta na razão direta do desflorestamento, mas o mercado de trabalho encolheu no campo, enquanto a devastação aumentava nos anos 90. E, nos municípios mais desflorestados, o índice de desenvolvimento humano, em vez de melhorar, piora. De quebra, ele previu que a monocultura da soja está criando “todas as condições” para quebrar os fazendeiros, que derrubando o Cerrado e a Amazônia acabarão derrubando também os seus preços.
Jorge Nogueira lembrou que, até meados do século XIX, antes de tomarem caminhos opostos, a economia e a ecologia tinham mais afinidades do que se pensa, afinadas pela mesma cartilha de eficiência na exploração de recursos naturais. E, depois de uma aliança que durou cem anos, a “insensatez extrativista”, que segundo o historiador José Augusto Padua norteou cinco séculos de civilização brasileira, está perdendo cada vez mais o apoio que parecia ter da teoria econômica. Há um cheiro no ar que, segundo Padua, pode ser “um sopro de conservação”.
Conheça o programa do congresso.
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