17 a 21 de outubro de 2004 – Curitiba – Paraná
Marcos Sá Corrêa está cobrindo o IV Congresso de Unidades de Conservação para O Eco. Até quinta-feira, 21, além das reportagens, O Eco também publicará na íntegra, em formato PDF, as palestras mais relevantes do encontro à medida que forem sendo apresentadas.
Alto, magro, de paletó, gravata e colete, mas suficientemente informal para, no palco, diante de quase 2 mil pessoas, pôr um par de óculos por cima do outro para enxergar o texto à sua frente, o holandês Daan Vreugdenhil é a prova viva de que já não se fazem arcas de Noé como antigamente. Ele é um desses ambientalistas que afirmam que o próximo surto de aquecimento global, que já reduziu no pólo norte a camada de gelo quase à metade dos 3 metros medidos nos anos 50, chegará com secas e furacões capazes de varrer da Terra uma boa parte de suas plantas e animais. Para salvar pelo menos 70% da diversidade natural que ainda existe, será preciso criar reservas que, em vez seguir o traçado das conveniências políticas e econômicas, moldem ao redor do planeta um mapa ditado pela sobrevivência das espécies.
O programa é complexo. Quebrou durante anos a cabeça de uma equipe de naturalistas como ele. Chegou a uma conta de 1 bilhão de dólares para implantar no mundo um sistema de unidades de conservação. E está ficando urgente. Mas, antes de falar sobre o programa que dirige no World Institute for Conservation and Environment, ele aproveitou sua relativa fluência no português – uma das sete línguas em seu currículo – para acordar o auditório do IV Congresso de Unidades de Conservação com um teste capaz de provar que o Brasil às vezes é muito melhor do que imagina.
“Estou muito impressionado com a organização deste seminário”, disse ele. Reunir mais de 1.700 pessoas para discutir meio ambiente por quatro dias já seria, para Vreugdenhil, um grande feito de organização. Mas o que chamou mesmo sua atenção mesmo foi o número de estudantes na platéia. “Levante a mão quem aqui tem menos de 30 anos”, ele pediu. Sobraram poucos braços abaixados. “Menos de 25”, insistiu. As mãos erguidas ainda eram minoria. Só quando ele baixou o limite para 18 anos foi possível contá-las. Eram pelo menos nove. Que ele chamou para a frente, o lugar “dos verdareiros VIPs”. Era para eles que queria falar. “Sabe quantos jovens havia num congresso mundial de meio ambiente no ano passado na Europa?”, perguntou. Três.
Havia dúzias de pessoas na platéia que viajaram mais de 1.500 quilômetros para estar ali. O que é, evidentemente, impossível na Holanda, um país de 29 mil quilômetros quadrados. Vreugdenhil trabalha há mais de 25 anos com esses assuntos. Foi ministro, em seu país, de Obras e Águas, quando dirigiu programas ambientais de 30 milhões de dólares. Tocou projetos na Costa Rica, na Hungria, no México e em Honduras. Implantou programas de monitoramento de água na Mongólia. E, como não podia deixar de ser, cuidou de prevenção de enchentes na Holanda. Agora, está à frente do Micosys, a tal arca de Noé ecologicamente correta.
O Micosys tem nome de doença, mas é remédio. Trata-se da sigla que, em inglês, resume o Mapa de Sistemas de Conservação, uma tentativa feita por biólogos para traduzir o máximo de complexidade natural em tabelas simples, que até um político possa achar que entendeu. Senão, diz ele, não há como conversar com eles. O Micosys é uma fórmula não só para fazer unidades de conversação, o que em si já é uma tarefa difícil, como para fazê-las nos lugares certos do ponto de vista dos bichos e das plantas, o que é ainda mais difícil, porque implica mexer na perspectiva humana.
Mas é, literalmente, vital. Vreugdenhil acha que o aquecimento global não é mais objeto de discussão. Ele vem aí. E vem com força, como viram os Estados Unidos pelos quatro furacões que varreram a Flórida este ano, como mensageiros das mudanças climáticas. Os pólos já estão murchando. Nos oceanos tropicais, a salinidade da água vem aumentando. As secas se estendem e multiplicam pelo mundo. E, no ano passado, 20% do território brasileiro queimou durante os meses de estiagem. “Há países que ainda não acreditam nisso e por isso não assinam o Protocolo de Kyoto”, disse ele. Alfinetar o governo Bush é um dos bordões do Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação. No auditório, há tantas lapelas com botões da campanha de John Kerry que o lugar parece uma convenção do Partido Democrata em Curitiba. “Mas isso é problema desses países. Os outros vão assinar”, ele conclui.
O aquecimento pode bater pesado no Brasil. Florestas que não perdem folhas podem se tornar decíduas, abrindo a passagem do sol até o chão, o que pode extinguir espécies que dependem de sombras. Em outras épocas de mudança da temperatura, havia espécies que eram capazes de sobreviver através da adaptação. Mas isso é muito menos provável num mundo onde as áreas selvagens ficaram pequenas e ilhadas. Nesse caso, uma equação “que nenhum ambientalista discute” mostra que, quanto menor o espaço, maior será a extinção. Se 10% ou 12% do planeta estiverem cobertos por reservas, é possível atravessar o aquecimento global com 70% das espécies, diz Vreugdenhil. “Mas eu acho mais sensato acreditar em 50%”. Aumentar essa quota não é tarefa aritmética. Com 25% de reservas, por exemplo, a taxa de sobrevivência mal chegaria a 80%.
É claro que poucos países no mundo podem sequer pensar em tamanha proporção de áreas protegidas. Exceto um, naturalmente: o Brasil, que brilha neste congresso como um paraíso tropical que em outros meios ele deixou de ser há muito tempo. Um dia nestas conferências faz mais pela alma do brasileiro do que dois anos de governo Lula. Ou de qualquer governo. Ali ainda se acredita, e se fala sem parar, num Brasil Grande predestinado a sair maior ainda da crise global que se aproxima. Tem a Amazônia e um dos recordes mundiais de diversidade de fauna e flora. Só falta querer. Deve ser por isso que Vreugdenhil falou antes de mais nada para os estudantes.
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