Reportagens

A soja do IPEA

O estudo que tenta absolver o impacto das plantações do grão no Brasil ignora que suas conseqüências ambientais indiretas são bem mais severas do que as diretas.

Maria Tereza Jorge Pádua · Marc Dourojeanni ·
14 de janeiro de 2005 · 19 anos atrás

Em meio à crescente acumulação de evidências sobre os prejuízos diretos e indiretos que a soja traz para o ambiente e especialmente para as matas e águas do Cerrado e da Amazônia, surge com curioso senso de oportunismo, uma argumentação que não só pretende desmentir que a soja seja responsável pela aceleração do desmatamento, como conclui que tanto a expansão da soja como o asfaltamento da BR-163, para evacuar a produção de soja de Mato Grosso pelo Pará, contribuirão para com a conservação da floresta amazônica. Os resultados do estudo, patrocinado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), propalados rapidamente urbi et orbi, chamaram muito a atenção e, por isso, o documento foi analisado. O resultado desta análise está muito longe de coincidir com as conclusões propaladas.

Em essência o estudo conclui que a expansão da soja foi feita eminentemente convertendo-se pastagens “degradadas” e não usando áreas “virgens” (as aspas são dos autores do estudo). A hipótese, baseada em poucas referências bibliográficas e jornalísticas, utiliza o argumento de que a rápida expansão da soja no período 2001-2004 não poderia ter-se feito em áreas virgens do Cerrado ou da Amazônia porque: (1) se requer um tempo para adequá-las ao cultivo de soja; (2) essas áreas não possuem a infra-estrutura necessária para a produção; (3) é mais fácil aproveitar para a soja áreas de pecuária extensiva, que já receberam calagem (como se esta prática fosse comum) e outras correções agronômicas e; (4) o cultivo da soja pode ser revertido posteriormente para a pecuária. Em resumo, a conclusão é que a expansão da soja não teve ou teve muito pouco impacto no desmatamento. Os autores agregam dois argumentos que merecem destaque por serem sui generis. Afirmam que o desmatamento no estado de Mato Grosso foi promovido pelos programas de colonização dos governos militares e que, isso é o mais interessante, “não é suficiente constatar – através, por exemplo, de fotografias aéreas – que a floresta amazônica ou as áreas remanescentes de cerrado estão sendo ameaçadas pela soja” (citação textual).

Começando pelo último argumento resulta que, segundo os autores, observar e medir o avanço da soja ocupando áreas do Cerrado e da Amazônia, comparando fotografias aéreas ou imagens de satélite de 1990 e de 2004 ou, como eles preferem, de 2001 a 2004, não é uma evidência. Ou seja, o que pode ser medido hectare por hectare, com muita precisão, não é prova, embora eles vejam valor científico em declarações de uns poucos indivíduos em entrevista jornalística. Isso é um assombro no mundo das ciências! Se o que a interpretação das fotografias aéreas revela não é verdade, pode ser que, realmente, nenhum humano tenha botado o pé na Lua e que nenhuma máquina de origem terrestre tenha fotografado Marte. Podemos começar a duvidar de tudo, inclusive de que seja verdade que um maremoto assolou as costas do Oceano Índico.

Essas fotografias, levianamente descartadas pelos pesquisadores do IPEA, revelam claramente que milhões de hectares da Amazônia foram desmatados durante os anos 90 – quando o governo militar não existia mais – e que proporcionalmente muito mais foi desmatado, especialmente no Mato Grosso, de 2000 a 2004. Inquestionavelmente, parte significativa dessa terra e da do Cerrado estão sendo cultivadas com soja ou usadas para outras especulações agropecuárias.

Os outros argumentos usados são igualmente incongruentes. Os próprios autores reconhecem que sua argumentação tem fraquezas. Em primeiro lugar não explicam o que é pastagem “degradada” sob o ponto de vista do estudo. Considerando que muitas das pastagens do Cerrado são, na verdade, simplesmente “Cerrado com vacas”, cabe perguntar se é isso do que falam, ou quiçá, se estão realmente falando de Cerrado substituído por pastagem semeada após ter-se extirpado a vegetação original e posteriormente, degradada. Em termos ambientais cada um dos casos é muito diferente. No primeiro, grande parte da biodiversidade ainda subsiste. De outra parte, nada tem de especial ou difícil em usar-se, em 12 meses ou menos, uma área plana do Cerrado previamente dedicada à pecuária extensiva, onde em geral se criava gado sem se derrubar totalmente a cobertura vegetal original. Passar correntões e máquinas no Cerrado enfraquecido pelas queimadas e o pisoteio dos animais, em terras planas, é muito fácil e rápido. A infra-estrutura necessária para cultivar soja em terras planas é, na verdade, mínima. É muito fácil fazer estradas rurais, onde passam sem problemas máquinas agrícolas e caminhões, considerando as estações para cada operação. Já na Amazônia é apenas um pouco mais difícil limpar a terra para cultivo, destarte, como reconhecem os autores, isso dependa essencialmente do dinheiro disponível para fazer a operação e da viabilidade de mecanização do serviço. De um modo ou de outro, se está falando de expansão violenta da soja sobre um prazo de três anos ou pouco mais.

Mas, o ponto mais fraco da argumentação do estudo é a falta de resposta a duas questões derivadas de suas conclusões. Se a soja ocupou milhões de hectares de terra da pecuária, então para onde foi a pecuária removida pela soja? A resposta é importante porque se sabe que a produção pecuária também aumentou muito nesse período. Para algum lugar, portanto, ela foi. Além disso, é preciso saber qual é a explicação para os milhões de hectares desmatados na Amazônia e no Cerrado no lapso de 2001-2004. Os autores querem explicar o primeiro ponto argumentando que a maior produção pecuária se deve a mais abate e a um súbito e tecnologicamente improvável aumento da produtividade. Com efeito, elevar a produtividade pecuária leva anos de esforço e grandes investimentos. E as vacas não crescem tão rapidamente como a soja.

Com relação à segunda pergunta, apenas para continuar com a argumentação, vamos supor que a versão dos autores seja correta. Nesse caso, qual foi a causa do desmatamento de milhões de hectares de mata amazônica no período de expansão rápida da soja, quando foram usados 1,8 milhão de hectares apenas no estado de Mato Grosso em 2003? Chama a atenção o fato de que não façam nenhum esforço por responder a essa questão-chave, esquecendo convenientemente que os impactos da expansão da soja, se não são diretos, podem ser indiretos. As estradas, por exemplo, não desmatam além da sua faixa de domínio, mas provocam o desmatamento de mais de 50 quilômetros de cada lado em apenas dez anos, conforme trabalhos publicados. Se a soja apenas empurrou as atividades agropecuárias para mais longe, assim mesmo não deixa de ser a responsável pelo impacto ocasionado. Não existe nenhuma possibilidade de passes de mágica nessa história. Os sensores remotos registram as queimadas e o desmatamento. Nada pode ser escondido. As cifras não fecham. Essa história de que a soja não provoca desmatamento é absurda. É como pretender ocultar o sol com a peneira.

Pior ainda é o patético esforço dos autores em demonstrar que o asfaltamento da estrada BR-163 contribuirá para “uma melhor aplicação da política ambiental”. Esta afirmação vai de encontro a todas as evidências científicas e empíricas acumuladas nos últimos 50 anos, consignadas em milhares de publicações, que estes novos “especialistas” em desenvolvimento amazônico não se dignaram a consultar. O argumento que usam é que a estrada, que eleva o preço da terra e viabiliza o cultivo de soja através da redução do custo do transporte, tornará inviável a agricultura itinerante, a exploração madeireira e a pecuária de baixo nível técnico. Este argumento economicista ignora completamente a realidade da Amazônia. Se a soja ocupa, desmatando-as ou não, as melhores terras ao longo da estrada, os pobres simplesmente irão mais longe para estabelecer suas roças e os madeireiros chegarão antes deles ou ao mesmo tempo, retirando o mogno e outras madeiras preciosas. A pecuária extensiva chegará depois, comprando barato as terras abandonadas dos agricultores itinerantes. Uma atividade como o cultivo da soja não substitui as outras formas de uso da terra. São cumulativas. A soja é cultivada pelos ricos e poderosos. As outras atividades correspondem a outros estratos e situações sociais. Os caboclos analfabetos nem podem ser trabalhadores das fazendas de soja, que precisam de operários especializados. São por elas marginalizados. Para os madeireiros e para os garimpeiros a soja é indiferente. O que lhes interessa é uma estrada boa para acessar e extrair madeira e minerais. Mogno e ouro ou pedras preciosas sempre podem competir com a soja.

Outro argumento usado pelos autores é que os produtores de soja respeitam a legislação ambiental, como a que determina que de 50% até 80% das propriedades, na Amazônia, e de 20% a 35%, no Cerrado, devem ser “reservas legais”, onde o corte raso é proibido, coisa que os agricultores ricos fazem e os pobres, segundo eles, não fazem, às vezes com apoio do Estado. Primeiramente, os autores esqueceram de falar também das áreas de preservação permanente (APPs) só pelo efeito da lei. Em segundo lugar, essa é outra afirmação que não guarda nenhuma relação com a realidade. A verdade é que nem ricos nem pobres, via de regra, respeitam essa legislação, mas a ação dos ricos é muito pior, pois possuem a maior parte da terra e têm as influências políticas necessárias para violar a lei, sem grandes riscos. É só viajar-se um pouco pelos mares de soja do Centro-Oeste, por exemplo, para se constatar que nem as veredas nem as matas ciliares nem as nascentes são poupadas, que dirá os 20% das reservas legais. De outra parte, aplicando a lógica dos autores, nenhum agricultor pobre deveria existir.

Aqui se repete algo que temos mencionamos a cada vez que escrevemos sobre o tema do desmatamento. Não se trata de se opor ao cultivo de soja, nem à agricultura intensiva. Ela é necessária e tem seu lugar no extenso território do Brasil. Neste caso é evidente que a soja não é o único motivo do desmatamento. É apenas um dentre muitos, embora seja um dos mais importantes na atualidade. Mas os impactos indiretos do ingresso da soja na Amazônia podem ser muito mais severos que os diretos, em especial no que diz respeito à BR-163. O que se pede é apenas que a questão seja analisada com seriedade e que as medidas preventivas sejam tomadas oportunamente. O estudo do IPEA segue uma linha contrária, pretendendo fazer acreditar que não há problemas e que tudo ficará melhor com a soja e com a estrada.

É difícil achar uma peça, supostamente técnica, tão cheia de absurdos e falta de lógica como este “texto para discussão”. E mais, o único sensato com relação a este estudo é tê-lo denominado de “texto para discussão”. Só que não há nada para discutir no próprio. Na verdade, esse trabalho presta um mau serviço aos cultivadores de soja e aos promotores da BR-163. Com o dinheiro que têm poderiam ter obtido uma defesa muito melhor.

  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

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